O retorno de Wonder Boy traz à tona sua bizarra história de réplicas

Trinta anos atrás Wonder Boy foi lançado para arcades no Japão, dando origem a diferentes franquias: a série principal, a sub-série Monster World e a série paralela Adventure Island. A numeração lógica de seus jogos nunca foi seu forte, chegando ao cúmulo de existirem dois Wonder Boy III distintos. Curiosamente, o fato de haver atualmente dois novos jogos da série em desenvolvimento por estúdios franceses diferentes, sem nenhuma relação entre si ou com o estúdio japonês que a criou, a extinta Westone, apenas reforça uma coisa: não importa o que aconteça, Wonder Boy sempre será uma zona.

No Brasil muita gente sequer sabe dessa confusão por conta de uma tal de Mônica. A TecToy foi esperta em transformar o segundo, quarto e quinto títulos da série em jogos da franquia de quadrinhos, intitulando-os Mônica no Castelo do DragãoTurma da Mônica em O Resgate e Mônica na Terra dos Monstros, respectivamente. As roupagens fizeram tanto sucesso que, na época, os próprios jogos também acabaram virando histórias em quadrinhos. Para muita gente nascida entre as décadas de 80 e 90, foi também o primeiro contato com RPG em videogames, ainda que eles toquem apenas na superfície do gênero.

Wonder Boy (acima) e Adventure Island (abaixo) eram praticamente o mesmo jogo

Wonder Boy (acima) e Adventure Island (abaixo) eram praticamente o mesmo jogo

Mas voltemos ao incrível fato de que Wonder Boy V é continuação de um dos dois Wonder Boy III, o que nos leva a indagar por que um deles não foi intitulado Wonder Boy IV. A salada começou logo no primeiro título da série, desenvolvido pelo estúdio japonês Westone em 1986 (na época chamado Escape) e lançado originalmente para arcades pela Sega e posteriormente para Master System. As mecânicas side-scrollerde Super Mario são replicadas aqui, mas com um twist: é preciso coletar frutas para impedir que a barra de vitalidade, que vai aos poucos diminuindo, se esvazie completamente, o que resulta na morte do personagem e perda de uma vida. Em outras palavras, é um jogo de plataforma com uma contagem regressiva bem impiedosa.

Embora a Westone fosse proprietária do jogo enquanto código e mecânicas, a Sega detinha os direitos sobre seu nome e personagens, o que impedia o estúdio de convertê-lo para plataformas que não fossem dela. Portanto, para levá-lo ao NES, da Nintendo, a Westone se juntou à Hudson Soft e apenas alterou o design dos personagens e seu nome. Assim nasceu em 1986 Adventure Island, uma espécie de imitação de Wonder Boy, ainda que oficial.

Mas enquanto Adventure Island, sob os cuidados da Hudson, dava continuidade às mecânicas de plataforma e temas de vida selvagem e pré-histórica explorados no jogo original, transformando-se em uma franquia popular entre o final dos anos 1980 e começo de 1990, a Westone dava uma guinada, injetando uma certa dose de RPG e fantasia medieval nas continuações de Wonder Boy. Assim surgiu Wonder Boy in Monster Land, lançado em 1987 para arcades e 1988 para Master System — Mônica no Castelo do Dragão, baseado no título, chegaria apenas em 1991. Monster Land também seria considerado o primeiro jogo da sub-série Monster World, que recebia uma numeração própria, o que fez surgir, eventualmente, um troço chamado Wonder Boy V: Monster World III no Japão. Nos EUA e no Brasil, a Sega e a TecToy tiveram o bom senso de eliminar os números.

O sexto e último título da franquia, Monster World IV, levou quase 20 anos para receber uma versão em inglês. Lançado originalmente apenas no Japão, para Mega Drive, o título só foi oficializado no ocidente em 2012, quando saiu para WiiXbox 360 e PlayStation 3 em suas respectivas lojas digitais.

Agora, com o remake Wonder Boy: Dragon’s Trap (um dos dois terceiros jogos e o que deu origem a Turma da Mônica em O Resgate) e o sucessor espiritual Monster Boy and the Cursed Kindgom, um título totalmente novo, que traz de volta muitos dos personagens e elementos da franquia, a série retorna com tudo — e com isso, a possibilidade de um novo jogo da Mônica, aos moldes dos antigos.

Mas por que dois?

Em entrevista ao Overloadr, Omar Cornut, o programador de Wonder Boy: Dragon’s Trap, retribuiu a pergunta: “Porque não? Quanto mais melhor, não acha?”

Embora Cornut trabalhe no remake desde 2013, sua paixão pela série (e pelo Master System como um todo) data de sua infância. Tal como no Brasil, o console 8-bit da Sega foi bem sucedido na França, onde Cornut nasceu e reside atualmente. Sua curiosidade o levou, ainda adolescente, a se aventurar pelo campo da engenharia reversa, o que resultou na construção do MEKA, uma poderosa ferramenta de emulação e hacking para Master System, Game Gear e outros consoles. Juntamente com a criação do site SMSPower!, ativo desde 1997 e especializado nos sistemas 8-bit da Sega, Cornut se tornou uma das figuras mais importantes do mundo na comunidade de preservação e pesquisa dedicada ao Master System.

Mesmo após ter trabalhado em jogos como os premiados Soul Bubbles e Tearaway, a fascinação de Cornut pelo Master System ainda continuava fazendo com que ele revisitasse os títulos do console, mas do seu próprio jeito. “Em 2013 eu queria aprender mais sobre Dragon’s Trap e encontrar novos segredos escondidos, e então comecei a fazer engenharia reversa no ROM. Eventualmente eu notei que sabia tanto sobre como o jogo funcionava que poderia criar uma versão nova e aprimorada dele.”

Cornut então entrou em contato com o artista Ben Fiquet, com quem trabalhou em Soul Bubbles e que compartilhava com ele o mesmo gosto pela série Wonder Boy, e os dois passaram algum tempo trabalhando juntos em ideias e protótipos. “Então dá pra dizer que era um projeto feito por hobby naquela época, embora já tivéssemos recebido a aprovação do [criador da série] Sr. Nishizawa.” Foi apenas em 2015, ao fecharem um acordo de distribuição com a publisher francesa DotEmu, especializada em licenças japonesas, e fundarem seu próprio estúdio, Lizardcube, que eles puderam transformar o projeto em sua ocupação integral. Igualmente importante foi a obtenção dos direitos de uso da franquia, atualmente propriedade da Sega e da LAT Corporation.

Paralelamente, em 2014, o estúdio Game Atelier, também francês, anunciou a campanha de financiamento coletivo de Flying Hamster II, com claras inspirações em Wonder Boy. A meta ficou longe de ser atingida, mas o projeto chamou a atenção da publisher alemã FDG Entertainment, que assumiu sua produção. Desde então o jogo está sendo chamado de Monster Boy (junção de Monster World e Wonder Boy) e se transformou em uma espécie de sucessor espiritual bastante fiel aos jogos da série — sem a licença da Sega, contudo.

Enquanto os dois projetos avançavam, em 2014, a Westone declarou falência, o que pode ter sensibilizado tanto os membros da Lizardcube quanto da Game Atelier a seguirem em frente com suas homenagens, produtos da paixão de seus criadores.

Thomas Kern, fundador da FDG, afirma que não existe rivalidade entre os desenvolvedores de ambos os jogos, mas ressalta que eles são bem diferentes: um é um remake fiel, com as mesmas mecânicas e level design de Dragon’s Trap, enquanto que Monster Boy é um jogo novo, inspirado nos jogos da série como um todo. Cornut reitera, dizendo até que estudou com o programador de Monster Boy, David Bellanco. “Na época eu comprei uma placa arcade System-1, da Sega, para Wonder Boy in Monster Land, e a levei comigo para a escola. Foi assim que eu aprendi a terminar o jogo com apenas um crédito no modo hard — sim, eu estou me gabando! Nós eramos apenas fãs da Sega que compartilhavam o mesmo amor pela série. É apenas engraçado que 12 anos depois ambos estamos fazendo jogos dentro do universo Wonder Boy!”

E vai ter versão da Mônica?

Tanto Cornut quanto Kern dizem conhecer as versões de Wonder Boy baseadas em Turma da Mônica. “Comprei os jogos da Mônica há uns 18 anos”, assume Cornut. “É bem divertido para nós ver essas variantes malucas, com a Mônica usando um coelho como arma. No meu site SMSPower! somos sempre curiosos sobre essas versões criadas no Brasil. A TecToy criou um bocado delas, como Chapolim x DráculaTV Colosso etc.”

Mônica no Castelo do Dragão (1991), Turma da Mônica em O Resgate (1993) e Mônica na Terra dos Monstros (1994)

Mônica no Castelo do Dragão (1991), Turma da Mônica em O Resgate (1993) e Mônica na Terra dos Monstros (1994)

Embora seja comum notar um certo desdém por parte de estrangeiros pelas versões brasileiras de Wonder Boy, Cornut reconhece o valor desses jogos para o público daqui. “É claro que nós franceses não lemos os quadrinhos da Mônica quando éramos criança então não nos identificamos com os personagens da mesma forma que os brasileiros ou outros jogadores sul-americanos. É impossível para a gente entender o sentimento e carinho que vocês possuem por eles.”

Kern diz que Wonder Boy recebeu muitas versões diferentes em vários sistemas, mas que a versão da Turma da Mônica “era realmente especial”. “Acredito que se eu tivesse jogado o jogo no Brasil pela primeira vez, eu iria querer os personagens da Turma da Mônica em vez do Monster Boy como protagonista”, diz, sobre o jogo da Game Atelier. Pensando exatamente nisso, pergunto a ele e Cornut se existe a possibilidade de vermos uma roupagem da Turma da Mônica em seus jogos, como antigamente.

Cornut é cético. “Há duas coisas envolvidas aqui. A primeira seria adquirir a licença do Maurício de Sousa ou quem quer que tenha os direitos sobre a série. Não é impossível mas é um trabalho enorme para uma equipe pequena como a nossa, e adiciona uma grande carga legal extra que pode colocar o software em risco. A maioria dos donos das licenças querem ter um parecer sobre o conteúdo, o que significa que nosso jogo teria que ser validado por equipes no Brasil. Isso sozinho pode criar gargalos e atrasos no processo de produção”, explica Cornut.

Veja também:
Como a Brasoft desbravou a localização de games brasileira há quase 20 anos

“A segunda questão é que todos nossos personagens são animados à mão. Ben Fiquet está fazendo todo o trabalho cuidadoso de design e animação. Se ele tiver que reanimar todos os seis personagens, isso seria traduzido em pelo menos um mês de trabalho em tempo integral. Ainda é uma possibilidade mas temos que considerar que esse um mês pode ser usado para melhorar o jogo em outras áreas, e de uma forma que seja benéfica a todos os jogadores do mundo inteiro. Então é uma escolha difícil para nós. Em um mundo ideal, é claro que gostaríamos, mas sendo uma equipe reduzida, é difícil dispor de tempo e recursos para fazê-lo.”

Kern parece ser um pouco mais esperançoso que uma versão da Turma da Mônica de Monster Boy venha, um dia, a acontecer. “No momento ainda estamos muito ocupados completando o jogo com os personagens planejados, mas assim que sair, a versão de PC poderia ser facilmente modificada com mods. Talvez isso seja algo que passemos a olhar no ano que vem. Eu acho que seria incrível para os jogadores brasileiros, que é um público imenso.”

Seja como for, a simples existência de Monster Boy e Wonder Boy: Dragon’s Trap já é algo a ser celebrado. Não é todo dia que vemos uma série, que poderia muito bem ter sido esquecida pelo tempo, receber não apenas um, mas dois jogos inéditos, ambos produtos de um fascínio que acompanha a vida de seus criadores há pelo menos duas décadas.

Monster Boy and the Cursed Kingdom chega ao PlayStation 4, Xbox One e PC no início de 2017. Já Wonder Boy: The Dragon’s Trap ainda não possui uma previsão de lançamento.