Análise – Wandersong

Uma das muitas inovações que The Legend of Zelda: Ocarina of Time trouxe quando foi lançado, 20 anos atrás, foi o próprio instrumento que dá nome ao título. Embora jogos de aventura já tivessem apresentado no passado mecânicas musicais, como Loom, Ocarina of Time nos deu o controle pleno de um instrumento virtual. Os mesmos botões que usávamos para golpear com nossa espada e esquivar das investidas inimigas eram usados para produzir melodias, com ou sem um propósito. As revistas da época até ensinavam a tocar músicas famosas dentro do jogo. Esse elemento de Ocarina of Time foi importante para nos apresentar novos verbos com os quais poderíamos interagir com seu mundo, mesmo que o jogo só reconhecesse algumas poucas melodias predefinidas. Embora o combate e a exploração sejam os elementos mais presentes em toda a experiência com o jogo, Ocarina of Time é muito lembrado por esses momentos musicais.

Criado pelo game designer independente Greg Lobanov e o estúdio de som A Shell in the Pit, ambos de Vancouver, Wandersong é uma espécie de Ocarina of Time que se apega exclusivamente às mecânicas musicais, dispensando o combate sem remover da equação o sentimento grandioso de aventura e a intensidade da ação. De forma muito genuína e inteligente, ele satiriza aventuras épicas em videogames, subvertendo as convenções do gênero e o estereótipo do herói clássico. O jogo, inclusive, abre com uma sequência onde o protagonista, um bardo, descobre ser predestinado a salvar seu planeta, muito embora sequer consiga empunhar uma espada. Sua jornada pessoal, então, é a de provar para o mundo que apesar de não ser o herói que todos esperam, ele é capaz de fazer a diferença com sua música.

Pode parecer bobo e cafona, mas Wandersong rapidamente nos convence de que há algo muito sincero e sensível na forma como ele aborda seus temas. Nosso pequeno bardo se vê capaz de resolver problemas que nem o mais forte dos heróis conseguiria, graças ao poder pacificador, conciliador e curativo de sua música. Com ela a gente não apenas aprende a se comunicar com espíritos, controlar plantas que nos servem de plataforma, balançar um sino ou direcionar o vento mas também fazer amigos, resolver conflitos políticos e trazer o sorriso de volta ao rosto das pessoas.

Tudo isso é feito a partir de uma interface extremamente simples e controles muito flexíveis, que permitem cantar e dançar livremente, mesmo enquanto se move ou durante diálogos e cutscenes. Na verdade, o canto é um aspecto tão fundamental em Wandersong que ele está presente em praticamente todos os momentos: canta-se as respostas dadas aos personagens, sílaba por sílaba ou o nome escolhido para nosso personagem no começo da aventura. Há, inclusive, músicas com letras rimadas, que embora não sejam cantadas de verdade, soam aos ouvidos como se fossem, com as notas acompanhando o desenrolar das palavras. E, aliadas às muitas pequenas histórias e alegorias de Wandersong, estes momentos estão entre alguns dos mais sensíveis, criativos e poderosos da história recente do videogame.

Um trecho em particular que me comove muito é quando cantamos uma música sobre o nosso desejo de receber do mundo a aprovação de quem nós somos, justamente no momento em que tentamos desfazer a maldição que aflige o namorado de um monstro. Desfeita a condenação, eles se abraçam e agradecem o bardo, dizendo a ele que nunca acharam que se sentiriam tão respeitados por humanos, que normalmente os desprezam. Como um homem gay, eu não consigo ver esse trecho senão como uma alegoria para o sentimento gratificante e libertador de se sentir acolhido e respeitado em um ambiente ou em uma situação em que você normalmente espera das pessoas a exclusão ou a indiferença.

Na longa jornada do pequeno bardo em busca da canção que pode impedir o fim do mundo, testemunhamos histórias de traição, de solidão e de preconceito, mas também de perdão, de união e de compaixão. Como se esses temas já não fossem poderosos o suficiente, o tratamento musical faz de Wandersong um dos jogos mais humanos, bonitos e sensíveis de 2018.

Mas o que Wandersong tem de comovente, ele também tem de cômico. Especialmente em suas primeiras horas, quando tudo era novidade, passei a maior parte do meu tempo sorrindo, quando não gargalhando ou derrubando algumas lágrimas. Sua densidade emocional, seja para o riso, seja para o choro, está nos seus traços simples porém repletos de personalidade, no seu texto breve porém extraordinariamente expressivo e nas maneiras criativas e surpreendentes como seu mundo reage à nossa cantoria, o que nos faz querer cantar para diferentes objetos e personagens.

E talvez uma das razões para que ele crie esse forte vínculo emocional com o jogador seja seu foco em narrativa, muito embora ele seja riquíssimo em mecânicas. Elas existem em função da trama e do drama — tanto que o jogo assume a forma de um teatro musical, dividido em sete atos, com direito a cortinas que se abrem e se fecham entre eles, além de um intervalo totalmente inesperado, que brinca de forma brilhante com alguns clichês dos videogames. Você joga Wandersong para saber como a história se desenrola, e não para subir de níveis, ganhar novas habilidades e explorar cenários em busca de recompensas.

Sem apelar para o colecionismo ou barras de progresso, Wandersong se preocupa em oferecer conteúdo condizente com cada situação, injetando variedade do começo ao fim de suas aproximadamente 12 horas de jogo. Como a Nintendo costuma fazer em seus Super Mario, Wandersong muitas vezes nos apresenta uma mecânica inteiramente nova para dispensá-la poucos minutos depois. Com isso, ele constantemente nos insere em situações inéditas e interessantes, diferenciando um trecho do outro e ajudando a manter o ritmo e o senso de jornada — o que acaba sendo muito importante, considerando que seu propósito é satirizar o próprio gênero de aventura.

Mesmo que seu sistema de canto seja usado para praticamente tudo, o jogo encontra maneiras de sempre reinventá-lo, como em um trecho de furtividade no escuro onde iluminamos apenas a direção em que projetamos a nossa voz trêmula, reflexo do medo do bardo em ser notado.

Ele nunca permite a repetição preguiçosa de padrões ou a reciclagem de missões. Embora seja dividido entre momentos de cidade, onde resolvemos pequenas quests e solucionamos os problemas propostos por seus moradores, e momentos de dungeons, digamos assim, onde se concentram os desafios de habilidade, ele sempre encontra maneiras de nos surpreender. Como quando ele nos insere em uma cidade com um cotidiano regido pela passagem do tempo, no qual é preciso entender a rotina dos personagens para solucionar seus problemas, algo que nunca mais é repetido.

Parece haver em sua estética cartunesca, seu texto e humor inclusivos e seu universo rico em personagens tão distintos uma inspiração em desenhos animados modernos. Há muito de Hora da Aventura em Wandersong, por exemplo, quando temos que viajar para uma realidade espiritual com o objetivo de negociar com um gato gigante e sonolento a continuidade da existência da vida em nosso planeta. Ou quando cantamos com nossa tripulação de piratas sobre nosso desejo de encontrar os mais puros grãos de café. A fantasia e o humor nonsense permeiam toda a aventura, mas tal como acontecem nos desenhos animados, os conflitos e os dilemas morais que ele toca são legítimos.

Quando lembramos que este é um jogo feito por, basicamente, três pessoas — um game designer e dois músicos — essa façanha se torna ainda mais surpreendente. Do começo ao fim, Wandersong é uma pequena maravilha. Os pouquíssimos problemas que tive com segmentos de plataforma ou as sequências que parecem durar um pouco mais do que deviam são insignificantes perto de todas suas conquistas. 

Wandersong não apenas critica e satiriza o gênero de aventura em videogames como ele próprio é um exemplo de renovação das fórmulas e convenções desse modelo. Ao negar inúmeras características desta categoria — das mecânicas viciadas de combate ao modelo condicionador dos sistemas de progressão — ele nos mostra o quão encantador e originais jogos de aventura podem ser quando injetados com um novo sopro de criatividade. 

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★★★★★

Wandersong não apenas critica e satiriza o gênero de aventura em videogames como ele próprio é um exemplo de renovação das fórmulas e convenções desse modelo. Ao negar inúmeras características desta categoria -- das mecânicas viciadas de combate ao modelo condicionador dos sistemas de progressão -- ele nos mostra o quão encantador e originais jogos de aventura podem ser quando injetados com um novo sopro de criatividade.