Uma história de abandono paterno quase arruinou a criação de No Place for Bravery

Foi uma noite de ansiedade e empolgação aquele 8 de julho. A equipe do estúdio independente brasiliense Glitch Factory aguardava impacientemente a chegada da categoria de melhor jogo brasileiro durante a premiação do BIG Festival 2022, que acontecia na capital de São Paulo, na qual seu jogo No Place For Bravery estava indicado. A tensão do time foi às alturas quando os finalistas da categoria finalmente foram anunciados, incluindo concorrentes de peso então já lançados, como os elogiados Dodgeball Academia e Wolfstride. Para a surpresa do grupo, o nome que ecoou no salão do Expo São Paulo foi o do jogo que eles haviam criado.

Pela vibração dos representantes do estúdio que subiram ao palco para receber o prêmio era impossível imaginar que, por trás daqueles minutos de alegria e celebração, houve momentos de angústia, incertezas e conflitos espalhados ao longo de sete anos.

No Place for Bravery (Onde a Bravura Não Tem Vez, numa tradução livre) começou a ser desenvolvido no final de 2015, com um investimento privado inicial de R$ 150 mil, inspirado pela produção independente de ponta daquele período, como Hyper Light Drifter. Mas antes de mergulharem de cabeça em seu desenvolvimento, os cinco sócios da Glitch Factory resolveram desenvolver um jogo curtinho e simples, Party Saboteurs, como forma de testar o entrosamento e habilidades da equipe. O que era para ser um projeto de dois meses acabou durando um ano e meio – um vício do desenvolvimento independente de games e uma espécie de prenúncio para o que viria a seguir.

No Place for Bravery ganhou na categoria de melhor jogo brasileiro no Big Festival. Foto: Henrique Sampaio

A produção de No Place for Bravery foi retomada, mas suas ideias centrais pareciam simplesmente não funcionar: mecânicas de viagem no tempo, quatro personagens jogáveis, tudo muito complicado e irrealista para uma equipe tão pequena e inexperiente. A frustração do grupo aumentava conforme publicadoras e investidores em potencial exigiam alterações e depois demonstravam desinteresse no projeto. “A gente nunca fechou nenhum contrato nessa época”, recorda Tulio Mendes, diretor criativo de No Place for Bravery, em entrevista via videoconferência. “Em 2017, a Glitch quebrou a primeira vez”.

Para piorar, perderam o prazo de entrega dos documentos para a inscrição do primeiro edital de games da Ancine, o que afetou a moral da equipe e acabou colocando o futuro de Bravery em xeque. Frustrado e angustiado com a situação, Tulio, que era artista no projeto, resolveu, por conta própria, reestruturá-lo para a segunda edição do edital da Ancine, aberta em 2017. ”Comecei a fazer o Bravery que eu acreditava. Que era esse jogo de ação que entregava uma mensagem, com uma história.”

A narrativa que Tulio começou a injetar no jogo, contudo, começou a se misturar com a sua própria: a de um filho criado por uma mãe solo, abandonado pelo pai. Na sua visão para Bravery, Tulio passou a imaginar, com base em seus próprios sentimentos conflitantes e dolorosos, como seria se projetar em uma mente como a de seu pai, um homem que o abandonou ainda na infância. Tudo envelopado em um jogo de ação sanguinolento com toques de RPG, ambientado num cenário de fantasia sombria.

“Foi uma ausência muito presente”, conta Túlio, sem entrar nos detalhes de sua vivência. “Tive uma criação religiosa, e havia uma pressão sobre questões de família. Então me marcou muito.” 

A iniciativa de Tulio dá certo e, desta vez, Bravery é aprovado no segundo (e último) edital da Ancine, o que garantiu à equipe um novo investimento de R$ 500 mil – muito em função da história de paternidade e abandono que queria contar, acredita o desenvolvedor.

Apesar da personalidade introvertida, Túlio começou a engajar a equipe. Em uma das primeiras reuniões nesta nova fase, no intuito de alinhar os sentimentos do time em relação aos temas do jogo, Túlio adotou uma dinâmica diferente: perguntou aos desenvolvedores, todos homens brancos, quem já havia tido problemas com o pai. O que se seguiu foram confidências pessoais e lágrimas, como em grupos de ajuda mútua. “Foi quando eu vesti essa camisa e tive certeza que a gente estava buscando algo diferente.” 

A gente não estava falando só de pais ausentes e mães solo. A gente descobriu que o cerne desse problema é uma questão de masculinidade tóxica. E o problema dos pais e da sociedade permitirem isso.

Conforme a narrativa foi ganhando corpo, a equipe percebeu que a trama englobava ainda outros temas correlatos. “A gente não estava falando só de pais ausentes e mães solo. A gente descobriu que o cerne desse problema é uma questão de masculinidade tóxica. E o problema dos pais e da sociedade permitirem isso.” 

Vendo o projeto finalmente ganhando corpo e solidez, a equipe concordou com a direção criativa de Túlio. Os membros da Glitch seguiram em 2018 com a confiança no projeto elevada, motivados pela nova fase de desenvolvimento e a liderança de Túlio. Seu ânimo, porém, durou pouco tempo.

“Eu sempre tive como se fossem duas velocidades”, conta Tulio. “Eu estava nesse meu modo que era um pouco mais extrovertido, alegre, fazendo piada com todo mundo, conversando. Chegava o dia seguinte e eu estava mal sem saber por quê. Ficava emburrado, quieto no meu canto. Eu só queria chegar, sentar e trabalhar. E, até então, eu sempre tive esse espaço.”

Nesses momentos de introspecção, o espírito comunicativo e alegre de Túlio desaparecia, levando consigo sua capacidade de gerenciar o time.

“Essa foi a forma que eu aprendi para me defender de tudo: me fechava, fazia quadrinhos, escrevia histórias, ficava quieto na minha sem ninguém me perturbando. Era uma forma de me isolar e pôr pra fora essas coisas que eu não entendia direito.” Tendo que conduzir uma equipe, contudo, Tulio se viu não sendo mais permitido a se manter neste espaço. E, ao ser arrancado dele, os problemas começaram a vir à tona.

Em suas flutuações de humor, Tulio passou a tratar os colegas de trabalho de forma autoritária, como se o projeto fosse seu e a equipe da Glitch estivesse lá para construir sua visão, sem a possibilidade de expressão individual e participação coletiva.

Sócios da Glitch Factory, com Tulio à esquerda. Foto: Divulgação

Naquele momento, Tulio estava saindo de um relacionamento de quatro anos, no qual, assume, “tinha cometido minha parcela de erros, de querer dominar, de querer sempre ser a voz da razão”, e parecia repetir o comportamento abusivo com a equipe de seu estúdio. 

“É um problema que tem mais a ver com direção criativa e gestão de equipe do que necessariamente com autoria. É sobre ser uma pessoa que sabe lidar com um tanto de responsabilidades sem que isso se confunda com autoridade. Porque, quando a gente se aprofunda na questão, a gente percebe que é um problema de masculinidade. Está relacionado com a forma como a gente foi criado, com uma sensação de poder”, opina, em um áudio de WhatsApp gravado durante um intervalo em seu treino de musculação – além de game designer, Túlio é tatuador e fisiculturista.

Aos poucos, o grupo de homens da Glitch começou a perceber que a masculinidade problemática que estava sendo abordada dentro do jogo criado por eles parecia ser a mesma que vinha comprometendo a equipe, com a liderança às vezes apática, às vezes agressiva de Tulio.

Para piorar, quando o diretor se isolava completamente, deixando transparecer sua falta de ânimo e capacidade de gerenciamento, a moral da equipe despencava, criando um clima de frustração e incertezas que comprometia o futuro de Bravery. A falta de perspectiva era tão grande que Tulio chegou a receber de um dos membros da equipe, como sugestão, a construção de uma “persona” que escondesse o que quer que estivesse passando com ele, para que ele simulasse os momentos de alegria que tanto entusiasmaram os desenvolvedores no início do projeto. Naquela altura, porém, Tulio já sabia que depressão não vinha com botãozinho de ligar e desligar. 

“Foi quando eu falei: eu preciso de ajuda. Eu não vou dar conta. Eu não estou gostando de mim agora e não quero ser essa pessoa. Eu sabia que tinha alguma coisa em mim, mas eu não sabia o que era. Aí eu comecei a fazer a terapia, que foi quando eu descobri a depressão.”

Cena de No Place for Bravery. Imagem: Divulgação

Uma dor constante

Enquanto tentava evitar virar aquilo que ele denunciava em seu jogo, Tulio acabava sendo obrigado a lidar, dia após dia, com o fantasma do abandono de seu pai que ele próprio imprimiu em Bravery. A possibilidade de simplesmente praticar o esquecimento e deixar para trás a dor ainda não superada, que o acompanhava desde a infância, desapareceu à medida que ele foi tornando-a um dos pilares do jogo.

“Foi também quando eu descobri que o projeto em si não era uma coisa leve como eu achava. Eu acabava lidando todo dia com minhas questões pessoais e com mais cinco pessoas, que são meus sócios – além dos funcionários. E, posteriormente, as pressões da publisher. E aí todo mundo apontando coisas no projeto, falando sobre a narrativa, e eu sabendo o que eu queria mas tendo que criativamente conversar com todo mundo. Foi bem intenso.”

O principal game designer do projeto, Felipe Todeschini, que trabalhou ao lado de Túlio na maior parte do tempo, confirma os embates. “Se eu não concordava com alguma decisão criativa do Tulio, eu debatia. Eu conversava a respeito. E às vezes ele dava uma carteirada.” Felipe conta que chegou a pensar em sair do projeto, mas que após se abrir com Tulio algumas vezes sobre sua vontade de ser ouvido e participar de forma criativa, o diretor passou a ser mais cuidadoso. “Nunca senti que foi uma coisa pessoal.”

“Ele mesmo me disse que esse foi um momento de aprendizado para ele como diretor de projeto. Eu estou em outra empresa hoje e eu estou num papel de liderança similar a que o Túlio assumiu e vejo o tanto que é desafiador. Você tem que fazer o time andar numa direção, defender essa direção. E você vai ter que lidar com pessoas. Na Glitch, estava todo mundo aprendendo a fazer isso.”

O roteirista Tiago Rech, que entrou no projeto no final de 2017, conta que recebeu duras críticas ao entregar a primeira versão do roteiro. “Foi um momento em que a comunicação poderia ter rolado melhor, mas também houve esse reconhecimento por parte da equipe de forma bastante sincera e humilde. Então eu não diria que fui prejudicado, até porque, de uma forma ou de outra, foi um aprendizado para mim também.”

Apesar dos revezes, o projeto avançou. Tanto que, em 2019, durante 7ª edição do BIG Festival – mesmo evento onde, três anos mais tarde, eles receberiam o prêmio de melhor jogo brasileiro –, a equipe apresentou Bravery a uma série de publicadoras internacionais, dentre elas a Ysbryd (do elogiado VA-11 Hall-A: Cyberpunk Bartender Action), que gostou do que viu e fechou um acordo de publicação. Com uma nova injeção de investimento e projeção de lançamento internacional no projeto, a moral da equipe voltou a subir.

A entrada da Ysbryd nos planos trouxe novas cobranças e prazos. Tulio, que por conta da depressão já tinha o costume de buscar refúgio no trabalho, passou a entrar em um modo de "crunch" (termo da indústria de games para jornadas de trabalho exaustivas, com mais de oito horas) constante, trabalhando de segunda a domingo. Nas reuniões com os sócios, passou a pressionar os colegas a adotar um comportamento de trabalho similar. "Era uma crença minha, de que a gente tinha que dar o sangue. Venho de um lugar muito pobre, então sempre tive a ideia de que trabalhar é tudo. Acho que a gente é ensinado a isso". 

Parte da equipe concordou com Tulio e passou a intensificar o trabalho, não sem gerar novos atritos entre os desenvolvedores. Com parte da equipe em jornada dobrada, os que optavam por uma rotina mais saudável e os descansos dos finais de semana passaram a lidar com ansiedade, como se, aos olhos dos outros integrantes, se importassem menos com o projeto por não seguirem o ritmo intenso promovido por Tulio.

“É um projeto muito grande, muito complexo e difícil. É o primeiro jogo grande da Glitch. Então é natural que rolem problemas de produção, de escopo, pela inexperiência do time mesmo em como produzir um jogo desse tamanho e como priorizar as tarefas”, opina Felipe, o game designer de Bravery.

Tulio Mendes no desenvolvimento de Bravery. Foto: Divulgação

O fim do prazo para a entrega do jogo à publicadora, em julho de 2021, veio acompanhado de uma nova crise. Além da equipe não estar contente com o resultado final, o processo de análise desencadeou em Tulio uma série de reflexões que pareciam explicar parte de seu comportamento obsessivo.

"Eu entendi que a minha relação com o trabalho era doentia e tinha construído uma verdade na minha cabeça em relação a isso porque eu não conseguia ficar só”, explica. “Se eu estava em casa, em vez de lidar com minhas questões, eu trabalhava. Se eu não queria sair com amigos porque estava mal, eu trabalhava. Eu trabalhava por qualquer motivo. E antes eu tinha vazões. Eu pintava, desenhava, fazia quadros. E como minha história pessoal virou o Bravery, então tudo acabou virando trabalho para mim."

"E foi uma forma de defesa muito boa porque todo mundo respeita. Acabei virando aquela pessoa que é extremamente trabalhadora e faz as coisas acontecerem. Todo mundo acha lindo e ninguém fica falando 'nossa, talvez esse cara tenha depressão'."

A insatisfação da equipe com o resultado da entrega de Bravery, somada à constatação de Tulio de que sua relação de trabalho era uma forma nociva de fugir de si próprio, que afetava a saúde de sua própria equipe, o levou a uma crise depressiva aguda.

“A pessoa que está trabalhando, ela aparentemente é saudável, mas na verdade, essa era a minha forma de lidar com o fato de não conseguir estar comigo. Não conseguir lidar com essa dor. Então, quando eu estava trabalhando, eu esquecia do mundo. Quando eu fiz essa descoberta e fui trabalhar de novo, desta vez entendendo isso, eu quebrei. Porque eu não conseguia mais trabalhar nesse projeto e ficar várias horas, virar a noite, porque eu sabia que eu estava fugindo dessa minha grande questão.”

Acabei virando aquela pessoa que é extremamente trabalhadora e faz as coisas acontecerem. Todo mundo acha lindo e ninguém fica falando ‘nossa, talvez esse cara tenha depressão.’

Entendendo que, apesar do esforço e do longo ciclo de desenvolvimento, os desenvolvedores da Glitch ainda estavam desapontados com a versão que haviam conseguido entregar, a publicadora Ysbryd ofereceu à equipe um generoso ano adicional de desenvolvimento, para que eles pudessem chegar a uma versão ideal, que àquela altura já parecia próxima. Com o lançamento adiado, todos puderam respirar aliviados.

De lá para cá, No Place For Bravery ganhou cobertura internacional em diversos veículos especializados e o principal prêmio da indústria brasileira de games, antes mesmo de seu lançamento. E Tulio, que retomou o trabalho à medida que foi se recuperando da depressão, está satisfeito com a mensagem que ele embutiu na trama de Bravery, compreendendo melhor o turbilhão de emoções que não só acometeu a si mas a todos ao seu redor.

“Homens são ensinados a se comunicar da forma errada. E o ambiente da Glitch sempre foi muito masculino, com cinco sócios homens. A gente pensava em mudar isso, mas todos eram amigos e acabou que não aconteceu. E o ambiente muito masculino é meio doente mesmo, na questão das brincadeiras, na forma inadequada de comunicar. Às vezes, por causa disso, a gente chega em locais da outra pessoa, que se ofende e não sabe lidar porque homem não tem muito recurso emocional. E quando eu falo isso, eu me incluo.”

Independentemente da performance de No Place for Bravery em seu lançamento, no dia 22 de setembro, a Glitch já é praticamente outra empresa. Em abril, parte da equipe começou um movimento de separação ainda incerto. Os sócios foram contatados para comentar sobre a direção criativa de Tulio e a separação da equipe, mas até a publicação da matéria, não retornaram o contato.

Apesar das dificuldades, tanto o game designer Felipe quanto o roteirista Tiago classificam a experiência na Glitch como positiva. “Foi um passo importante para mim como aprendizado de trabalho”, diz Tiago. “2018 foi um ano bastante difícil em termos financeiros, o que também teve seu peso na minha saúde mental, na época. O Bravery foi um dos poucos projetos que tive naquele ano, e foi uma oportunidade de desenvolver uma história num tom diferente do que eu acabo sendo chamado pra fazer com mais frequência. Nesse sentido eu saí feliz, sim, do projeto. O Túlio e a equipe da Glitch sempre colocaram bastante confiança no meu trabalho, o que nem sempre acontece com quem está escrevendo a história.”

Felipe, que saiu da Glitch por conta de uma oferta de emprego em outra empresa, e que hoje assume um papel de liderança em um time, diz pôr em prática o que aprendeu com o Túlio. “Eu acho que a direção do Túlio foi muito boa. Inclusive, eu tiro o aprendizado na confiança que ele teve e no que acreditava.”

Procure ajuda

Secretaria de Saúde

Centros de Atenção Psicossocial (Caps)
Site: saude.df.gov.br/carta-de-servicos-caps

Serviços de saúde mental da rede
Site: saude.df.gov.br/saude-mental

Núcleo de Saúde Mental do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu)
Telefone: 192

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Telefone: 188
Site: cvv.org.br

Grupo de Apoio aos Sobreviventes de Suicídio (GASS)
Site: cvv.org.br/blog/tags/gass-cvv

Apoio a Perdas Irreparáveis (API)
Site: redeapi.org.br/unidades

Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos – ABRATA
Site: https://www.abrata.org.br/grupo-de-apoio-online/