Análise: Bayonetta 2

Não entendo muito bem como japoneses tratam as diferenças de gênero e como isso é refletido na cultura de seu país, mas ouço com frequência que o Japão é um país machista. Dito isto, é fascinante como Bayonetta 2, produto tipicamente japonês, pode ser tão valioso no debate da representação de gênero nos videogames, além de ser um jogo excelente.

Bayonetta, enquanto personagem, é um ponto fora da curva da tão comum objetificação e exploração sexual das personagens femininas nos videogames. À priori escrava do male gaze (que, no cinema, é a câmera que se foca no corpo de uma personagem feminina, passiva de objetificação, tanto para representar o olhar de um personagem heterossexual masculino quanto para servir de apreciação do próprio público dominante, um sinal típico de desigualdade de gênero na cultura popular), a aparente sensualidade de Bayonetta parece servir mais para confrontar o jogador tradicional (o igualmente homem heterossexual) do que excitá-lo. A própria arte de capa do jogo reflete essa estranha dualidade: apesar do inevitável olhar que possamos dar ao seu traseiro claramente destacado, Bayonetta é retratada como uma mulher livre, independente e, em contraste à sua leveza e ternura, mais do que capaz de defender a si própria, empunhando quatro pistolas, uma em cada membro do corpo.

Humor e erotismo se misturam às bizarrices japonesas de forma que o jogo não parece, necessariamente, querer estimular sexualmente o jogador, pelo menos o ocidental (eu realmente não entendo muito bem como fantasias sexuais são tratadas no Japão) e o adulto maduro, ainda que o male gaze esteja tão presente. Soa, na verdade, como uma sátira. Tudo é tão exagerado, ridículo e hilário que a sexualização da personagem acaba sendo mais uma forma de deboche.

Bayonetta transcende o feminino, e talvez por isso eu a vejo mais como uma drag queen. De alguma forma, possível resultado do choque entre perspectivas orientais e ocidentais, tudo parece fazer parte de uma grande fantasia gay: as transformações animais (pantera, borboleta, cobra), o poder de seus cabelos infinitos e mutáveis, a total liberdade da expressão sexual, o senso de dominância, os golpes sadomasoquistas… É um interessante encontro entre o ponto de vista feminino (ainda que repleto de estereótipos) e a fantasia de poder tipicamente masculina, o que parece reforçar ainda mais a fascinação do público gay pela personagem. E, no caso de Bayonetta, o poderio não se limita à força bruta.

No universo de Bayonetta 2, ninguém ousa questionar a personalidade, estilo e aparência da heroína. Apesar de todas as excentricidades e a sensualidade de Bayonetta, ela jamais é hostilizada ou assediada por ser quem é. Em um mundo onde mulheres são culpadas de estupro por terem sido “sexy demais” e homossexuais de espancamentos por não agirem de acordo com os padrões masculinos, Bayonetta é uma fantasia libertadora e inspiradora, uma validação da expressão pessoal, da identidade própria.

Ela é sensual e exibicionista quando quer, e não está à mercê dos desejos voyerísticos do jogador. Tanto que quando a câmera está sob seu controle, por mais que ele tente, ela se recusa a focar exclusivamente as zonas erógenas de seu corpo. Bayonetta tem controle e autonomia sobre si própria. Por mais que este controle esteja na mão do jogador, ela demanda dele o mesmo respeito exigido dos outros personagens de seu universo, femininos ou masculinos.

E como qualquer performer que envolve seu próprio corpo e sua sexualidade em sua arte, Bayonetta é acima de tudo humana. O novo jogo explora sua humanidade e seus sentimentos, seja com sua deliciosa ironia e estilo debochado, seja através de seu instinto maternal e senso de proteção para com os mais fracos, jovens ou com aqueles com quem ela se importa. Aos poucos, Bayonetta 2 nos mostra uma personagem que, em constraste ao seu infindável poder, também possui suas fragilidades e emoções. Embora breves, normalmente explorados nas longas, frequentes e divertidas cutscenes entre uma sequência de ação e outra, estes momentos são imprescindíveis para criarmos uma empatia com Bayonetta e nos importarmos com ela, culminando, ao final do jogo, na mais melancólica dança sensual já feita por ela, ao som da belíssima Moon River, cantada originalmente pela personagem de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo. A música, inclusive, é para a continuação o que Fly Me To The Moon, de Frank Sinatra, foi para o jogo original.

Tudo que é colocado em um jogo ou deixado de fora dele pode nos dizer algo, afinal, jogos eletrônicos são produtos culturais criado por pessoas inseridas em uma sociedade, e consumidos da mesma forma, dentro de diferentes e inevitáveis contextos socioculturais. E Bayonetta 2 tem muito a dizer sobre representação de gênero nos videogames, sendo essa mensagem algo intencional de seus criadores ou não.

“Ok, mas e o jogo, Henrique?”

Eu não considero jogos apenas uma coletânea de mecânicas e sistemas isolados de seus argumentos e conteúdo, e, no caso de Bayonetta 2, acho a subjetividade da representação da personagem e suas simbologias tão fascinantes e relevantes quanto a objetividade de suas mecânicas, por melhores que elas sejam. Mas se é com isso que você mais se importa, Bayonetta 2 é um dos melhores representantes atuais do hack ’n slash, gênero que faz de Devil May Cry (do mesmo criador de Bayonetta, Hideki Kamiya, vale ressaltar) e God of War (este sim, bastante questionável na forma como trata gêneros) alguns de seus principais representantes.

Bayoneta 2 expande as ideias contidas no primeiro jogo, trazendo uma ação mais acelerada, exagerada e impactante. Mas, mais do que melhorar aquilo que Bayonetta já fazia, a continuação amplia seu universo e qualidades de forma significativa. Simultaneamente, ele é mais acessível, sem que isso prejudique a experiência. Há até um modo opcional baseado em toque, que usa a tela do Gamepad do Wii U em vez dos botões e direcionais, mas tão simplificado que você simplesmente irá querer ignorá-lo.

A liberdade e sensualidade de Bayonetta, mencionada acima, está refletida diretamente no cerne de sua jogabilidade: os combates. Mais leniente a erros e menos punitivo, Bayonetta 2 é sobre expressão, prazer e performance, sobre estar em sintonia com si próprio, em um transe de concentração e deleite.

Desviar de golpes para ativar o Witch Time, um efeito de câmera lenta temporário, que lhe dá vantagens sobre os oponentes, parece ser mais facilmente executável (às vezes ativado até por acidente), ao mesmo tempo em que nem sempre ele se faz imprescindível. E com uma maior variedade de armas compráveis, que podem ser equipadas nos pés ou nas mãos da heroína, o jogador se sente ainda mais livre para montar sua sequência de golpes e, com eles, se expressar. É como uma dança, cujo desafio é superar a si próprio, realizando os movimentos mais fluidos e sensuais possíveis, aproveitando o deleite estético e sensorial de cada minuto.

Bayonetta 2 nunca se dá por satisfeito. É o Mario Galaxy dos hack ‘n slash. A cada nova fase, novas ideias e mecânicas são exploradas, com o único objetivo de surpreender o jogador e despertar-lhe mais prazer. Brincadeiras com percepção, orientação e velocidade, somadas à variedade de cenários e situações, criam uma experiência que parece nunca se esgotar de ideias. As batalhas contra chefes geralmente representam o que há de mais inventivo e intenso, com chefes colossais e lutas que acontecem no ar, debaixo d’água, sobre veículos em movimento e tantas outras situações absurdas.

Há tanto a ser explorado em seu intrincado sistema de combate, que se torna ainda mais complexo com a profusão de itens, armas e acessórios que aos poucos são desbloqueados para serem comprados, que mesmo quando cheguei ao fim, em aproximadamente 12 horas de jogo, comecei imediatamente uma nova campanha, em um modo mais difícil.

A modalidade cooperativa online parece só fazer sentido por causa de seu sistema de recompensa, baseado em performance e risco. Quanto mais o jogador se arrisca, escolhendo a cada round o(s) inimigo(s) enfrentado(s) e aumentando o nível de dificuldade, maior é sua recompensa. Se os dois jogadores vencerem o oponente, o responsável pela melhor performance leva a maior parte da recompensa (no caso, auréolas, a moeda corrente do jogo, compartilhada com o modo individual). Vencer múltiplas vezes seguidas significa multiplicar a quantidade de auréolas obtidas, o que acelera o processo de compra dos itens, acessórios, golpes, roupinhas e armas na loja. É um sistema divertido e interessante, que mistura cooperação e competição, mas também a única justificativa para você querer jogar com alguém online - isso se a longa espera por um parceiro não te afugente antes.