Análise - Virginia

Em 2012, Thirty Flights of Loving usou a linguagem do videogame para contar uma história em menos de 20 minutos sem uma única palavra, apenas com sequências em primeira pessoa que faziam uso de um recurso cinematográfico que os jogos nunca antes haviam ousado incorporar: edição. Sim, cortes abruptos de cena, que transportavam instantaneamente o jogador para um outro local, tempo e situação, em prol de uma narrativa dinâmica. Mesmo que ele pudesse se sentir desnorteado por alguns instantes, rapidamente o jogo o situava de volta aos acontecimentos. Essa experiência me fez perceber que videogames, enquanto narrativa, eram como planos sequência infinitos. Filmes sem edição.

O game designer e escritor Jonathan Burroughs e o animador Terry Kenny também jogaram Thirty Flights of Loving, sem imaginar que, seis anos no futuro, eles estariam lançando um jogo que homenagearia a obra interativa de Brendon Chung. Deixar seus empregos para fundar a Variable State e criar um jogo dezenas de vezes mais ambicioso que o de Chung pode ter sido uma das coisas mais ousadas que eles já fizeram em suas vidas. Dessa ambição, nasceu Virginia.

Aqui incorporamos Anne Tarver, uma recém-promovida agente do FBI que, ao lado de sua parceira veterana Maria Halperin (duas mulheres negras, vale ressaltar), investiga o desaparecimento de um garoto na pequena cidade fictícia de Kingdom, no estado americano de Virginia, em 1991. Conforme os eventos se desenrolam, o drama psicológico de Tarver se intensifica: questões relacionadas à sua própria identidade e a busca pela sua verdade particular sutilmente entram em cena, se misturando aos fatos e criando uma atmosfera surreal, repleta de simbolismo e ambiguidade.

Se há algum tipo de desafio em Virginia, ele é puramente interpretativo. Aos moldes de outros dramas interativos, como Dear Esther, Gone Home e Fragments of Him, ele avança com naturalidade a partir de poucos inputs do jogador. O diretor David Lynch é outra enorme influência nos temas e na forma como a narrativa é desenvolvida. A dupla tanto canaliza Lynch que sua poderosa trilha sonora foi tocada e gravada ao vivo pela Orquestra Filarmônica de Praga, no mesmo estúdio que o diretor usou para as trilhas de Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos.

A música, por sinal, é um elemento de extrema importância na experiência de Virginia. Na ausência da linguagem verbal, é ela que preenche o espaço e dá o tom emocional das sequências. Dado que as cenas são todas conectadas através de cortes secos, o jogo inteligentemente espera a deixa para encaixar o próximo trecho musical, nem que, para isso, precise manter uma nota suspensa no ar, dando um clima tenso, até que o jogador realize a ação que dará continuidade à sequência. É um trabalho audiovisual brilhante, tão preciso quanto um espetáculo minuciosamente projetado para te envolver do início ao fim. De certa forma, é como uma versão jogável do longa de animação musical Interstella 5555, do Daft Punk, que também dispensa diálogos, intercalando sua narrativa em torno da música.

O desenvolvimento da trama e seus personagens é de uma sagacidade e sutileza difícil de se ver nos videogames. Com exceção de alguns poucos trechos em que ele recorre a textos para revelar certas informações, tudo é transmitido através de gestos e ações de grande significado narrativo — um triunfo também do belíssimo trabalho de animação. A decisão da Variable State de representar apenas o que importa para a trama faz com que o jogador saiba que, tudo o que está sendo visto e feito, constrói de alguma forma os personagens e as situações.

Quando Anne deixa de passar o batom vermelho, jogando-o no lixo, momentos após você vê-la no mesmo banheiro, em outra ocasião, passando o cosmético nos lábios, você sabe que algo fez com que ela tomasse aquela decisão. Ou quando repara nas caixas de pizza vazias sobre o balcão de sua cozinha, em uma cena posterior ao momento em que ela pega para si o folheto de uma pizzaria encontrado no quebra sol do veículo de Maria.

Paralelamente aos eventos pontuais e cronológicos, divididos entre os dias que compõem uma semana, em tempo corrido, a narrativa explora diversos recursos para apresentar as origens, motivações, medos e desejos da protagonista. São sonhos bizarros e mudanças de planos temporais (flashbacks, flashfowards), que adicionam camadas psicológicas à trama, intencionalmente confundindo nossa noção de realidade. Nada é entregue gratuitamente ao jogador, cabendo unicamente a ele juntar as peças do quebra-cabeça e entender a imagem que se forma. Não seria exagero dizer que Virginia é o mais próximo do que temos de Cidade dos Sonhos nos videogames.

Os cortes nunca desrespeitam o jogador, sempre dando a ele o tempo necessário para se situar e entender o que fazer. Para o bem ou para o mal, os eventuais desnorteios causados pelos recurso apenas contribuem para a latente sensação de que há algo maior e mais complexo por trás do simples desaparecimento do garoto.

Independentemente de seu estilo narrativo, sua trama certamente poderia ter sido moldada para ser mais compreensível e acessível, mas aí Virginia não seria Virginia. Um sonho febril não é algo fácil ou agradável, afinal. Além disso, diferentemente de outros jogos do gênero, em que eu sentia que uma única jogada era suficiente para apreciá-lo em sua plenitude, Virginia quase que clama por uma segunda rodada, assim como os filmes de Lynch são melhor compreendidos se vistos novamente.

Desenvolvido pela Variable State
Distribuído pela 505 Games
Disponível para PC, PlayStation 4 e Xbox One
A versão testada, para PC, foi cedida pela 505 Games ao Overloadr