Streets of Rage 4 se mantém na zona segura da nostalgia - Análise

AAssumir as rédeas de um novo episódio da série Streets of Rage pode ser visto tanto como um ato de ousadia quanto de loucura. A própria Sega rejeitou diversas tentativas de desenvolvimento de um novo jogo que fizesse jus à trilogia original lançada entre 1991 e 1994 para o Mega Drive.

Havia uma boa razão para essas constantes desistências: embora fosse popular em consoles 16-bit, o gênero beat ‘em up malemal sobreviveu depois da metade da década de 1990, ficando relegado a um nicho. Foram várias as tentativas, inclusive da própria Sega, de manter o gênero vivo na virada do século, quando gráficos em 3D eram praticamente obrigatórios — quase todas, fracassadas. 

Foi preciso um distanciamento continental, um intervalo de mais de duas décadas, um remake bem sucedido de Wonder Boy: The Dragon’s Trap e um fortalecimento independente do nicho de beat ‘em ups para que a Sega fosse finalmente convencida a aprovar uma nova continuação. Fruto da parceria entre desenvolvedores franceses, Streets of Rage 4 foi a primeira tentativa de resgate da série a fugir dos gráficos em 3D e do realismo — fórmula perfeita para assassinar franquias clássicas, como a Sega bem aprendeu com Golden Axe. Seu êxito está justamente em replicar as mecânicas e o estilo dos jogos originais, porém sem se limitar a eles. 

 
 

Cyrille Lagarigue e Jordi Asensio da Guard Crush, que já haviam declarado seu amor pela série com Streets of Fury, um dos melhores beat ‘em up da última década, criado com pouquíssimos recursos, ficaram responsáveis pelo game design. Já Ben Fiquet, da Lizardcube, o artista por trás das lindas animações de Wonder Boy: The Dragon’s Trap, foi encarregado de criar a arte e a trama.

Durante o desenvolvimento a maior incógnita foi a trilha sonora, talvez o elemento mais impactante da trilogia: Yuzo Koshiro e Motohiro Kawashima, os compositores originais da série, só confirmaram a participação muito tempo depois do anúncio, após uma suspeita apresentação especial da trilha de Streets of Rage em Paris, onde a Lizardcube e a publisher Dotemu ficam localizadas. Havia um porém: eles seriam compositores convidados, juntamente com vários outros. As músicas principais ficaram a cargo de Olivier Derivière, que apesar de ser um experiente compositor de trilhas para videogame, trazendo em seu currículo jogos como Alone in the Dark, Remember Me e A Plague Tale: Innocence, nunca havia produzido música dançante, a motriz musical de Streets of Rage.

O resultado é exatamente o que pode se esperar dessa equipe: mecânica e visualmente, Streets of Rage 4 é espantosamente bom e bem resolvido. Musicalmente, tem níveis moderados de sucesso.

A natureza repetitiva dos beat ‘em ups costuma ser a culpada pela queda desse gênero após os anos 90, mas se isso fosse verdade, jogos como Diablo e roguelikes não seriam atualmente tão populares. O que matou esse gênero foi a falta de sistemas complementares que dessem um maior sustentamento às mecânicas básicas de luta desses jogos — ou, no bom videogamês, um loop de gameplay engajante. Streets of Rage 4 faz isso muito bem, sem precisar recorrer aos tradicionais “elementos de RPG”, com a adição de um sistema de combos, que dialoga diretamente com o sistema de pontuação, que por sua vez interage com as mecânicas de vidas, de avaliação de performance ao fim da fase, de desbloqueio de novos conteúdos e por aí vai.

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Avançar pelas fases, enfrentando ondas de inimigos cada vez mais difíceis para eventualmente chegar até o final do jogo, é apenas a primeira camada superficial. O que faz com que você queira repetir dezenas de vezes o modo história, que é totalmente linear e dura em média uma hora e meia, ou rejogar suas fases individualmente em busca de uma performance melhor, é justamente esses sistemas complementares, que dão sentido à essa repetição — não muito diferente de outros jogos essencialmente arcade que fazem isso muito bem, como Rez ou Tetris Effect. Somado a isso há modos adicionais e suporte a dois jogadores online e quatro local, que estendem ainda mais a vida útil do jogo.

O sistema de combos é baseado no velho e eficiente esquema de risco e recompensa: atacar oponentes em sequência aumenta uma contagem de golpes. Ao passar alguns segundos sem realizar uma ação, essa contagem é encerrada e convertida em pontos extras. Quanto maior o dano causado em sequência, maior o multiplicador de pontos. Mas basta ser atingido uma única vez para que essa contagem seja interrompida e os pontos acumulados, perdidos. Conforme você entende esse sistema, e como ele determina seu progresso e performance (bem como as vidas extras que você ganha ao bater metas de pontuação), você passa a jogar não apenas para passar de fase, mas para dominá-lo e bater novos recordes, o que é uma tarefa muito desafiadora. Somado a isso há tabelas de pontuação online, permitindo que amigos compitam indiretamente. É um jogo arcade perfeitamente pensado para 2020.

Embora a ação seja basicamente a mesma dos jogos originais, mantendo o mesmo padrão de ritmo, golpes e habilidades especiais, ela foi moldada para que os jogadores possam criar longas sequências de ataques. Inimigos rebatem em paredes ou no limite da tela, permitindo que você continue socando-os no ar; objetos lançados contra oponentes quicam de volta para você e por aí vai, tudo pensado para permitir uma dança contínua de movimentos. Fazer isso de forma elegante, garantindo combos gigantescos e reações em cadeia inteligentes exige um grau de especialização que poucos conseguirão atingir.

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O visual é outro componente atualizado com sucesso em Streets of Rage 4. As animações “à mão” fluidas seguem o padrão de qualidade de Wonder Boy, desta vez porém em um estilo menos caricato, mais sujo, mas ainda assim bem cartunesco. Às vezes parece haver um quê de Turma da Mônica Jovem nessa mistura de cartoon com anime, especialmente no design de alguns personagens, como a novata Cherry. Ironicamente, esse aspecto juvenil se estende para o jogo como um todo, trazendo uma representação “limpinha” de crime, vida noturna e violência urbana, então não espere ver coisas como palavrões e desenhos obcenos em locais onde eles claramente existiriam, como banheiros públicos. Talvez a coisa mais adulta a aparecer aqui seja um plug anal gigante, na fase da galeria de arte, em referência a uma obra real que causou revolta na direita francesa em 2014

Esse descolamento da realidade contribui para uma certa (e talvez inevitável) crise de identidade em Streets of Rage 4. Em um claro exemplo de exportação cultural norte-americana, o jogo original, criado no Japão, retratava um cenário de violência comum às grandes cidades dos EUA entre as décadas de 70 e 90, em especial Nova York e Chicago. Não coincidentemente, essas mesmas cidades foram o berço da música eletrônica, como o house, descendente da disco music, que inspirou Yuzo Koshiro a compor sua trilha sonora. Assim, ele é produto da cultura popular do período, bem como filmes e programas de TV com a mesma temática.

Ambientado 10 anos após os eventos de Streets of Rage 3, em uma cidade semelhante a Nova York, o quarto episódio existe num vácuo bizarro, que tenta se encaixar nesse mundo da violência urbana e policial norte-americana dos anos 80 ao mesmo tempo que busca uma identidade própria no mundo atual, por meio de uma trama sobre lavagem cerebral e o poder de influência da música em multidões. Enquanto no original o antagonista era Mr. X, um caricato lorde do crime, que empunhava até mesmo uma Thompson típica dos mafiosos de Chicago, em Streets of Rage 4 os vilões são os gêmeos Y, filhos do Mr. X, jovens mimados que se vestem inteiramente de branco e tem como aliado um DJ com um capacete a la Daft Punk.

Enquanto os jogos originais mantinham uma coesão temática e dialogavam com aspectos da cultura norte-americana da época, Streets of Rage 4 parece mais focado em se alimentar da nostalgia, sem saber com muita clareza como conectar o universo do jogo original na modernidade.

Enquanto os jogos originais mantinham uma coesão temática e dialogavam com aspectos da cultura norte-americana da época, Streets of Rage 4 parece mais focado em se alimentar da nostalgia, sem saber com muita clareza como conectar o universo do jogo original na modernidade.

A trilha sonora é a que mais sofre dessa falta de identidade própria. Olivier, o compositor principal, tenta emular a sonoridade clássica da série como um todo (que por sua vez já é bastante eclética) enquanto a mescla com estilos mais contemporâneos durante as fases. Essas, por sua vez, seguem uma estrutura dinâmica, mudando conforme o jogador progride pelos segmentos. Já os compositores convidados sonorizam sequências de chefe ou de menu. 

Na teoria, isso soa interessante, mas na prática, é uma salada musical pouco criteriosa. Já na primeira fase, por exemplo, temos um acid house bastante similar à icônica Go Straight de Streets of Rage 2, seguido de algo que soa como um hip hop desafinado com toques de chiptune e uma escolha duvidosa de timbres, que transita para um um electro dub, finalizando com um tech house na sequência de chefe. É uma mistureba esquisita e desconexa que persiste durante o jogo inteiro, como uma banda fora de sintonia. Para piorar, Olivier nem sempre acerta na sua capacidade de emular estilos dançantes, produzindo na maior parte do tempo batidas e melodias inócuas e genéricas, que, seguindo a estrutura de música dinâmica do jogo, acabam antes mesmo que possam se desenvolver para algo interessante.

Veja também: Como Streets of Rage introduziu uma geração à música eletrônica

Não que Streets of Rage não tenha tido músicas esquisitas ou ruins no passado, mas ao menos Koshiro e Kawashima se esforçavam em manter uma consistência em cada jogo, do gingado R&B predominante no primeiro jogo ao hard techno efusivo e experimental que dominava o terceiro.

Há músicas boas em meio à miscelânea destrambelhada de Streets of Rage 4, mas o pacote como um todo está longe de reproduzir o impacto que os jogos originais causaram, seja pela maestria técnica de Yuzo Koshiro, que usou diferentes técnicas de conversão e manipulação de ondas de sintetizadores analógicos para superar as limitações de timbres e percussão Yamaha YM2612, o chip sonoro do Mega Drive, seja pela sua capacidade de traduzir para um videogame, pela primeira vez com fidelidade, um estilo musical feito para pista de dança. 

Considerando sua origem em uma das mais efervescentes cenas de música eletrônica do mundo, de onde vieram nomes como Daft Punk, Gesaffelstein e Kavinsky, musicalmente, o quarto episódio soa como uma enorme oportunidade perdida. 

Sua trilha potencialmente decepcionante para os fãs mais criteriosos e ouvidos mais exigentes não mancha em nada o excelente trabalho artístico e de design que existe nessa continuação. Embora a Guard Crush e a Lizardcube tenham optado pelo caminho seguro da replicação, às vezes beirando o remake, talvez ele fosse o único realmente viável para que essa continuação milagrosa deixasse de existir apenas nos sonhos dos fãs.

Streets of Rage 4
Desenvolvido pela Lizardcube e Guard Crush
Distribuído pela Dotemu
Disponível para PlayStation 4, Xbox One, Switch e PC
Jogado no PC

Lançamento: 30 de abril de 2020
O texto foi feito a partir de uma cópia do jogo providenciada pela assessoria de imprensa da Dotemu