Com críticas ao pensamento rígido e a dogmas, Iconoclasts tem trama e comentários surpreendente profundos
Nota: este texto trata dos temas e história de Iconoclasts. Em breve teremos um vídeo em que falaremos sobre suas mecânicas
É claro que o nome do jogo deveria ter servido de indício sobre os assuntos que seriam abordados, mas ao explorar as primeiras áreas de Iconoclasts ou ouvir uma de suas principais músicas, é provável que você não pressuponha o peso e profundidade com que o jogo trata temas muito sérios. Ele vai para além da crítica à veneração de ídolos (ou ícones) e, de maneira ponderada, desmonta e mostra os malefícios de linhas de pensamentos dogmáticos.
Ao sairmos de nossa casa pela primeira vez, um abrigo um pouco distante de outras cidades, tudo ali está colocado para fazê-lo pensar que se trata de “mais um desses”. Mais um desses jogos que passeamos em cenários verdejantes e lindos. Mais um desses com inimigos de aparência fofa e que são em nada ameaçadores. Mais um desses com uma organização ditatorial que derrotaremos no decorrer de uma dezena de horas. Mais um desses repleto de positividade e otimismo, que trará uma sensação de dever cumprido quando estivermos vendo os créditos rolarem. E aí, em certa medida, nada disso acontece.
Iconoclasts nos coloca na pele de Robin, uma garota ainda jovem que possui um conhecimento que poucos naquele mundo têm: o de mecânica. Com uma espécie de chave inglesa, ela é capaz de interagir e manipular uma série de mecanismos, permitindo a nós, como jogadores, alcançar locais e abrir portas que ninguém mais é capaz, e, na trama, de realizar consertos e reparos, ajudando os habitantes locais.
O problema é que essas ações são proibidas. O One Concern (traduzido livremente como “Um Dever” ou “Uma Preocupação), espécie de teocracia que domina o mundo, não aprova que pessoas não escolhidas tenham esse conhecimento ou usem dessas habilidades, o que torna Robin uma fora da lei. Essa organização que providencia a toda população recursos como o tão importante Ivory, usado como combustível, além de outros serviços. A partir do momento que um vilarejo passa a requisitar menos mecânicos, por exemplo, surge a desconfiança de que consertos ilegais estão sendo feitos. Essa transgressão pede por uma punição divina, que basicamente significa a morte dos pecadores em um ritual dentro de suas casas.
O One Concern gira em torno de figuras chamadas de Ele e Mãe, benevolentes desde que você siga à risca o dogma por eles instituído. Aqueles que se provarem realmente fiéis podem, quem sabe, ser levados a City 1, um ambiente urbano e utópico em que seus cidadãos podem viver livres de preocupações. Aqueles que saem de linha sofrem a Penitência – parte dela descrita acima -, além de serem caçados por Agentes, seres com habilidades e poderes sobre-humanos. E bem, se você já leu ou assistiu qualquer história sobre um regime opressor em um universo distópico, não é difícil imaginar como as coisas escalam a partir daí, levando a protagonista a uma jornada não apenas contra essa instituição, como também a uma que a faz lutar pela própria sobrevivência.
As coisas começam a ficar realmente interessantes quando somos apresentados à existência de outras formas de pensar, em oposição ao One Concern. Existem outras estruturas sociais e religiosas espalhadas por esse mundo, com as quais entramos em contato. Uma das principais é o Isi, em que em vez de Ele e Mãe, reverenciam seus ancestrais e buscam neles iluminação e conhecimento, com interpretações distintas não só sobre o pós-vida, como também sobre como conduzir essa existência que temos aqui agora. Um de seus principais preceitos é um foco na reprodução da espécie e é bem interessante como essas diferentes mitologia são refletidas nas estátuas usadas para salvar o progresso.
O primeiro contato que temos com o Isi é um brisa de ar fresco, uma mostra concreta de que existe um pensar e um existir para além do One Concern. É um outro momento de “mais um”; quantos jogos e quantas histórias não têm essa estrutura, de nos fechar em um mundo opressor e nos fazer escapar de perigos por muito pouco para, depois, aliviar essa tensão ao nos mostrar que esse tempo todo não estávamos sozinhos? E se esse fosse o caminho seguido por Iconoclasts ele não seria necessariamente ruim, mas não haveria nada de muito chamativo em sua história.
O que ocorre é que nos fica progressivamente claro que, apesar de não ser o grupo que está em posição de poder, o Isi é, no fim das contas, apenas mais uma estrutura de pensamento dogmático com os mesmos tipos de problemas que o One Concern. A única diferença é que sua opressão é uma mais emocional e psicológica em vez de física, guiando as pessoas por culpa em vez de medo. Enquanto o Isi parece inicialmente uma resposta à teocracia que enfrentamos, vemos através de Mina que não é bem assim.
Mina, companheira que encontramos ainda no início e que fica ao nosso lado por toda a aventura, é um exemplo concreto de outras formas de opressão do pensamento dogmático. Ela enxerga e expressa os males provocados pelo One Concern, mas é cega aos próprios grilhões. Em um diálogo em certo momento, logo depois de afirmar que é livre, a garota é questionada se ela poderia seguir qual profissão quisesse, uma vez que ela vive fora das regras d’Ele e da Mãe. A resposta de Mina é um “não”, acompanhado de uma justificativa de que tem deveres específicos para que sua pequena sociedade funcione. A personagem que há pouco estava resoluta é de repente agressiva, traço que vemos nela em outras ocasiões, devido aos conflitos que tem por não achar um caminho que a permita fazer o que ela acredita ser importante e necessário, sem que sinta culpa por não seguir fielmente o Isi e estar sempre por perto de sua mãe.
O que Iconoclasts faz frequentemente é evitar um comentário cansado e básico, conseguindo apresentar um argumento lúcido sobre o que ele vê como limitações ao pensamento e a busca por respostas prontas, apenas porque outras pessoas disseram que teria de ser assim. É um desses jogos em que sentimos por trás de cada uma de suas ideias uma autoria, algo que fica mais evidente quando levamos em conta que ele foi basicamente desenvolvido por uma só pessoa, Joakim Sandberg, ao longo de sete anos.
É em grande medida por conta de personagens bem desenvolvidos, carismáticos e variados que esses temas conseguem aparecer com sutileza de maneiras que você não espera inicialmente. Além dos conflitos mencionados de Mina, um dos melhores exemplos disso está em Elro, irmão de Robin, que sofre uma devastadora perda no início do jogo por conta de ações que tomou contra o One Concern. A consequência disso é que, de questionador, Elro se fecha e não vê mais possibilidade de acabar com a teocracia que os aflige. Ao se ver impossibilitado de alcançar os objetivos que almejava, ele não pondera sobre o que fazer de diferente, mas determina que o objetivo é em si impossível.
Essa teimosia que chega a beirar o doentio é também um exemplo de como o jogo aborda outras facetas do pensamento dogmático, uma vez que ele não faz parte do Isi e despreza o One Concern. Elro se fecha tanto que chega ao ponto de querer impedir que outros tentem qualquer coisa. Se ele não conseguiu lutar contra essa teocracia, ninguém mais irá conseguir.
Elro é dos casos mais legais de “mais um”. O personagem, quando apresentado, dá todos os sinais de ser um clichê, um guia que está ali para orientar Robin, o salvador que surgirá na hora certa e nos incentivará como jogador. O exato oposto acontece, e é bem chamativo que, ao final da aventura, aquele que deveria ser quem mais nos amava e confortava era a figura que eu mais desprezava de todo o rol de personagens.
Sem ter um ritmo cansativo por conta disso, um a um os indivíduos que encontramos se mostram inicialmente profundos, mas subitamente limitados quando aprendemos o quanto que suas ideias são laçadas por obsessões que os fazem descartar toda e qualquer outra questão. Mesmo que estejam fora da opressão do One Concern ou não sigam os ensinamentos do Isi, seus pensamentos acabam por ser tão fechados quanto os daqueles ensinados a acreditarem em certas imagens desde que nasceram. Constantemente os clichês do mestre ou do vilão iluminado, tão utilizados em videogames, são subjugados de forma criativa e inesperada.
Nada poderia amarrar melhor tudo isso do que todo segmento final de Iconoclasts e como ele evita o tom épico. Há um evento que altera o significado de tudo que vimos até então de maneira – por falta de uma palavra melhor – ridícula e ao mesmo tempo perfeita. Tudo é cru, sem pompa, e não consigo pensar em um ato diferente do que é feito por Robin, na última cena do jogo, que melhor desafie os diferentes tipos de dogmas que presenciamos e pontue a conclusão de todas as ideias apresentadas até então.
Ao final, acho que a questão que pode ser feita é, ao negar quase tudo e mostrar as imensas falhas dos vários pensamentos que encontramos, o que Iconoclasts quer dizer? E para isso não há resposta direta ou simples. Não é nem mesmo pragmatismo que ele defende, pois Robin, em suas tentativas de remendar tudo, acaba por sair em buscas que por vezes terminam em falhas, com perdas gigantes e definitivas.
Se há um tom positivo no seu discurso no fim das contas é que o melhor que podemos fazer para tentar melhorar as coisas é estarmos abertos. Abertos a críticas, a aceitarmos que nosso ponto de vista pode não ser o melhor naquela situação, de que podemos estar completamente errados e que é preciso estarmos abertos a mudarmos de perspectiva se percebermos que estamos olhando cegamente para um objetivo sem considerarmos o que podemos estar perdendo no caminho.
Iconoclasts está disponível para PC, Mac, Linux, PlayStation 4 e PlayStation Vita.