Análise - Prey

Quanto mais conhecemos o trabalho da Arkane, mais fica evidente que a companhia de origem francesa é quem melhor dá continuidade ao trabalho dos lendários estúdios Looking Glass e Irrational, responsáveis por alguns dos mais influentes jogos do game design ocidental, como System Shock e BioShock, respectivamente. Prey, novo título da Arkane, faz parte dessa linhagem, seguindo à risca o conceito de “immersive sim”, termo cunhado por Warren Spector ao descrever a experiência baseada em liberdade de escolhas no mundo simulado de Deus Ex, o qual ele dirigiu. Embora tudo em Prey grite BioShock à primeira vista, por ser a comparação mais próxima que temos em mãos, em termos estéticos e mecânicos, é em System Shock, especialmente sua aclamada continuação de 1999, que estão suas principais influências.

Prey nos insere em uma realidade alternativa em que John Kennedy nunca foi assassinado e a Guerra Fria nunca existiu. Durante a década de 1960, EUA e União Soviética constroem a estação espacial Kletka para estudar uma forma de vida inteligente conhecida como Typhon. Em 1998, porém, um acidente catastrófico obriga as autoridades a abandonarem o projeto e a estação, que acaba sendo privatizada e adquirida pela megacorporação TranStar, é renomeada de Talos I. Em 2035, incorporamos Morgan Yu (que pode ser do sexo masculino ou feminino, mas a tratarei como mulher, dada minha escolha pessoal), que colabora com seu irmão, Alex Yu, CEO da TranStar, em experimentos com uma tecnologia chamada Neuromod, comercializada na Terra

Neuromods são microchips criados a partir dos estudos realizados com a espécie alienígena Typhon que, quando instalados no cérebro humano, dão a seu receptor habilidades e conhecimentos instantâneos, como em Matrix. O problema é que quando o microchip é removido, todas as memórias construídas a partir do momento em que o instrumento foi implantado são perdidas, criando na vida do indivíduo um lapso temporal. É incrível o que a equipe de escritores e designers de Prey (que inclui Chris Avellone, um dos nomes mais proeminentes do RPG ocidental) conseguiram fazer com essa premissa. A Talos I e as dezenas de histórias contidas ali exploram inúmeras particularidades políticas, sociais e científicas deste cenário, das práticas moralmente questionáveis conduzidas pela TranStar a conceitos tecnológicos que, por mais absurdos que sejam, são tratados de forma plausível, como uma “granada reciclante” que libera uma carga de energia que suga tudo o que está ao seu redor (vivo ou não), separando e condensando todos os materiais em pequenas esferas.

A criatividade da equipe parece interminável conforme você navega pelos diferentes recintos que compõem a Talos I, dividida em áreas de trabalho (como laboratórios de construção de aparatos baseados em tecnologia alienígena, câmaras de teste e escritórios), de moradia e de lazer e convívio. Através da exploração livre destes ambientes e dos registros deixados pela tripulação, em sua maioria morta, reconstituímos um cenário não apenas de efervescência científica, mas de relacionamentos humanos. Histórias de amizades, rivalidades, romances, parcerias e conluios estão espalhadas na forma de sub-tramas desenvolvidas em e-mails trocados, registros em áudio, bilhetes e até fichas de personagens de um RPG de mesa jogado por um grupo de cientistas. Dezenas dessas histórias viram quests opcionais, algumas delas envolvendo escolhas e decisões morais que afetam, de uma forma ou outra, a trama principal. As etapas finais da aventura, que pode durar mais de 40 horas dependendo da atenção dada a você às histórias paralelas e aos detalhes, se ramifica em diversas escolhas diferentes, que por sua vez são consequência de suas ações, como resgatar ou matar certos indivíduos. E perceber como o jogo parece reagir e se lembrar de tudo o que você fez ou deixou de fazer aumenta a carga de importância de cada decisão, bem como sua capacidade de imersão.

A tripulação é tão importante em Prey que há terminais em que é possível acessar listas com os nomes de todos os indivíduos atuando na Talos I, com suas respectivas funções e estado de saúde. Marcar um deles indica sua posição no mapa da estação, o que pode ser imprescindível para recuperar itens específicos ou cartões e senhas carregados por eles, que dão acesso a suas estações de trabalho, dormitórios ou cofres. Embora esse recurso seja obrigatório em determinadas missões, ele é totalmente livre para ser explorado pelo jogador. Esse foco nos indivíduos e nos registros de sua existência na Talos I gera uma experiência mais intimista que outros jogos do gênero: é comum nos deparamos com um mesmo nome em diferentes lugares e ocasiões, conhecendo um pouco das funções daquele indivíduo e sua importância para a estação, para então, em algum momento, acabar encontrando seu corpo -- ou pior, percebendo que ele virou uma cria alienígena hostil, a qual você precisa matar.

Embora Prey não seja exatamente delicado na maior parte do tempo (bem o oposto disso, para dizer a verdade), há momentos genuinamente humanos nele, e essa atenção aos tripulantes parece ser a razão disso. A protagonista, Morgan Yu, por outro lado, é um tanto oca. Cercada em mistérios desde o início devido ao loop temporal em que se encontra nos primeiros momentos de jogo, a personagem, que sofre de amnésia, segue as instruções de January, uma voz misteriosa que parece ser a única pessoa de confiança na Talos I e tem a mesma função de guiar o jogador que Atlas tinha em BioShock -- ou Delacroix em System Shock II. E embora haja uma trama repleta de reviravoltas e revelações sinistras envolvendo seus lapsos de memória, ela se desenrola com pouca clareza ou impacto, dada a enorme quantidade de personagens paralelos, sub-tramas e situações que servem apenas para estender o tempo de jogo, e que acabam tumultuando a história central. Por isso, o real valor da narrativa de Prey está na Talos I e seus tripulantes.

Natureza mutante

Em sua ação, Prey fica entre BioShock, que pende para o uso de armas de fogo e habilidades ofensivas, e Dishonored, que estimula a furtividade. Assim, seus combates não são tão frequentes quanto no jogo da Irrational, apesar de serem igualmente intensos, e sua movimentação não tão elegante e suave quanto na outra propriedade da Arkane, embora ele abrace a verticalidade. Há aqui um conjunto bastante peculiar de armas, ferramentas e habilidades, seja para confrontar os inimigos alienígenas, seja para ultrapassar os diferentes tipos de barreiras impostas pelo jogo em nossa exploração.

Há poucas armas de fogo, sendo que duas delas sequer são hostis. O canhão GLOO lança bolotas de uma espécie de cola de secamento instantâneo, que pode ser usada para restringir a movimentação de inimigos, vedar vazamentos de gás inflamável dentre outras coisas. Sua função mais interessante, porém, é criar plataformas, as quais, quando feitas em paredes, nos permitem escalar os cenários, que muitas vezes escondem no alto passagens secretas e caminhos alternativos. Outra dessas armas, uma besta de brinquedo, que lança dardos de espuma, serve para pressionar botões em terminais com telas sensíveis a toque à distância, o que possibilita usar computadores localizados dentro de salas trancadas, desde que você encontre alguma abertura na parede.As habilidades alienígenas, liberadas aos poucos para aquisição conforme você analisa inimigos, são igualmente criativas: você pode transformar corpos humanos em aliados, fazer coisas levitarem ou mesmo se metamorfosear em objetos inanimados, uma habilidade dos mímicos, um dos elementos mais intrigantes de Prey. Estas criaturas pretas molengas, uma espécie de mistura entre aranha e estrela-do-mar, são capazes de imitar a forma de qualquer objeto, reassumindo sua fisionomia original e se lançando contra você caso se aproxime. A inteligência artificial desses bichos é boa o suficiente para que você caia nesse truque, o que resulta em sustos constantes ao longo do jogo. Quando adquirida pelo jogador, a habilidade é especialmente útil para passar por frestas, na forma de qualquer objetos pequenos, o que é tão ridículo quanto genial.

Tudo isso dá brecha para muitas soluções diferentes aos puzzles e situações propostos por Prey. Há sempre tantas alternativas diferentes (e não tão predefinidas como em Deus Ex) para acessar ambientes trancados (ou os terminais dentro deles) que, de alguma forma, você acaba sempre encontrando uma solução, seja escalando a parede e entrando por uma passagem superior, seja ativando um terminal através de um buraco na parede com sua arma de brinquedo, seja hackeando a porta, seja encontrando o cartão de acesso no corpo de quem trabalhava naquela sala, seja se transformando em uma caneca. Prey se arrisca ao deixar escancarado ao jogador o leque de possibilidades, e isso é tão admirável quanto perigoso, do ponto de vista do game design. Se por um lado jogadores podem abusar da criatividade e moldar sua experiência à sua própria maneira, torcendo suas regras internas e limites em benefício próprio, por outro, o jogo pode simplesmente se desfazer na sua frente, quando encontramos um jeito de adentrar um lugar que não deveríamos ou antecipamos a solução de algo antes que o jogo ainda não nos ofereceu.

Speedrunners têm aproveitado essa característica para finalizar Prey (que é imenso) em meros 13 minutos. Dado o quão cautelosos game designers costumam ser em suas tentativas de guiar os jogadores, prevendo suas ações e mantendo um senso de controle e previsibilidade sobre todas as situações criadas para eles, essa leniência é um tanto corajosa. Igualmente notável é o uso da gravidade zero, que acontece tanto dentro quanto fora da Talos I. A Arkane realizou um ótimo trabalho nestes trechos, que normalmente evitam combates, dada a dificuldade de movimentação, que se assemelha a de uma nave, exigindo que o jogador controle a angulação e velocidade do personagem, por meio de impulso e freio.

Em vez de seguir a linha de interface minimalista de BioShock, que dispensa inventário e gerenciamento de itens, Prey resgata o estilo de System Shock 2, que por sua vez segue o padrão de RPGs tradicionais. Isso dá a Prey uma experiência mais mecanicamente densa, com elementos de crafting e uma progressão de personagem mais elaborada, com seis linhas de aprendizado, divididas em habilidades humanas e alienígenas. E essas escolhas geram consequências: adquirir uma certa quantidade de talento não humano faz com que os sistemas de segurança da Talos I passem a identificá-lo como alienígena. Isso significa que você será alvo de turretas tal qual seus inimigos -- as quais podem ser grandes aliadas se você seguir o “caminho” humano.

Talvez os problemas mais evidentes de Prey sejam seus controles, que parecem funcionar melhor na combinação mouse e teclado do que em gamepads, dada a total ausência de assistência de mira. Alguns jogadores relatam a sensação de estarem flutuando, talvez devido ao leve atraso de resposta dos comandos. De qualquer forma, em cinco ou dez minutos de jogo, eu já não sentia mais nenhum estranhamento no uso dos direcionais analógicos que, de fato, respondem de forma um pouco desajeitada em um primeiro momento, me habituando rapidamente. Prey também não está livre de problemas técnicos, ao menos por ora. Houve um ponto em minha experiência, no PlayStation 4, quando um certo item da missão principal era adquirido, próximo ao final, que passar por um determinado trecho incontornável do mapa fazia a taxa de quadros (que normalmente se mantém estável, em 30 frames) despencar a níveis tão baixos que o jogo simplesmente congelava, resultando em uma tela de erro padrão do PS4. Após diversas tentativas frustradas, achei que seria impossível dar continuidade, mas de alguma forma, após uma certa insistência, consegui atravessar o local, fazendo a taxa de quadros voltar ao normal.

Mas as imperfeições de Prey, sejam técnicas, narrativas ou de design, não tiram o brilho de suas qualidades. A Arkane teve coragem de assumir riscos, incrementando a densidade de suas mecânicas e expandindo os limites da fórmula. Ela dispensou a simplificação da forma assumida por BioShock e foi além de Deus Ex, tratando possibilidades como algo orgânico e não meramente predefinido. Ainda que caia nas armadilhas e nos clichês do gênero, há em Prey algo genuinamente criativo e inovador, que certamente leva adiante a linhagem da Looking Glass.

Prey
Desenvolvido pela Arkane Studios
Distribuído pela Bethesda
Disponível para PC, PlayStation 4 e Xbox One
A análise foi feita com uma cópia do jogo para PlayStation 4 providenciada pela assessoria de imprensa da Bethesda no Brasil

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★★★★✰

A tradição da Looking Glass é levada em frente em boas mãos através de Prey, um immersive sim da Arkane que dá ao jogador liberdades maiores do que o de costume até mesmo para o gênero.