Análise - Unavowed
Unavowed é um novo capítulo importante na história da Wadjet Eye. O estúdio fundado por Dave Gilbert foca-se na criação de point-and-clicks aos moldes clássicos, como os que víamos nos anos 1990. O gênero hoje em dia ganhou nova vida por conta de eventos como o Kickstarter da Double Fine que resultou em Broken Age ou da roupagem que a Telltale deu a esse tipo de jogo, alcançando extrema popularidade com a primeira temporada de The Walking Dead. No entanto, quando Gilbert lançou o primeiro episódio da série Blackwell, o trabalho mais conhecido do estúdio, no ido ano de 2006, isso estava longe de ser verdade. O próprio Steam era ainda um bebê, com apenas três anos de idade e sem a presença das grandes distribuidoras.
E ainda assim, a Wadjet Eye prosperou, não só finalizando a franquia Blackwell em 2014, mas também distribuindo outros títulos do gênero, como Shardlight e Technobabylon, jogos esses que apesar de não serem liderados por Gilbert receberam ajuda por parte dele. Seu nome acabou sendo tão associado aos point-and-clicks que ele também participou de outros aspectos na produção desses jogos, como quando foi responsável pela direção de voz em Kathy Rain.
Entretanto, o único trabalho autoral do fundador do estúdio nos últimos doze anos foi Blackwell e mesmo que levemos em conta a data de lançamento do último episódio, estamos falando de uma janela de quatro anos. Unavowed marca o retorno de Gilbert a um trabalho inteiramente autoral e personagens criados por ele.
O motivo da demora está na maleabilidade que o título tem. Além dos elementos clássicos do gênero, envolvendo primariamente que observemos o cenário, coletemos objetos e interajamos com outras figuras, Unavowed possui escolhas, característica que vemos em RPGs como Mass Effect, por exemplo. No início da aventura, optamos por uma de três histórias de origem – a de sermos um ator, bartender ou policial – o que altera a cena de abertura e varia um pouco as possibilidades que aparecem em alguns diálogos.
Não só isso, mas depois que temos nossa equipe formada – e já falo mais sobre isso – precisamos escolher quais dois companheiros que virão conosco em nossas investigações. Cada um deles tem capacidades distintas, o que leva a resoluções diferentes dos puzzles. Gilbert falou em entrevistas que a ideia com isso foi a de criar um point-and-click para uma geração que adora ver transmissões de jogos. Na maioria dos aponte-e-cliques tradicionais, se você viu a solução de um enigma ele está feito. O desafio desses jogos está na descoberta e, retirado isso, não restam motivos para se jogar por conta própria se estamos falando apenas de mecânicas (você sempre pode querer retornar pela história, claro). Mas se as possibilidades são várias, um jogador pode assistir e ainda sentir vontade de jogar e tomar caminhos diferentes.
É curioso que a solução encontrada pelo desenvolvedor, em grande medida, é uma já executada anos e anos atrás. Maniac Mansion, de 1987, tinha um protagonista fixo, porém ele era acompanhado de mais dois personagens que devíamos escolher dentre seis, cada um com possibilidades próprias. Ter uma escritora permitia o uso de uma máquina de escrever, enquanto o engenheiro é capaz de consertar um rádio, sendo que cada uma dessas ações são viáveis para se chegar ao final do jogo.
O que ocorria em Maniac Mansion é que a personalidade de nossos aliados existia praticamente apenas em seu visual, em sua maioria estereótipos de nerd, surfista, punk e assim por diante. Em Unavowed os personagens que nos acompanham são, bem, personagens de fato.
Como é de costume com a Wadjet Eye, o jogo tem elementos fantásticos. Ele não é apenas ambientado no mesmo universo da série Blackwell, como também se passa na cidade de Nova Iorque. Independente de qual origem você tenha, eventos logo no início do jogo fazem com que sejamos possuídos por um demônio, nos provocando a cometer uma enormidade de atrocidades. Muito tempo depois desse acontecimento somos libertados através de um exorcismo por membros da Unavowed, uma organização que luta contra aparições sobrenaturais e fantásticas, sem que nós que não fomos tocados por mágica – chamados de mundanos – saibamos de sua presença no mundo.
O problema é que por conta das coisas que fizemos enquanto éramos dominados, somos procurados pela polícia. Assim, não resta escolha senão a de deixarmos nossa vida para trás, assumirmos uma nova identidade e integrarmos a Unavowed que, diga-se de passagem, está precisando de novos recrutas. O mundo andava até pouco tempo bem tranquilo em relação a eventos paranormais, porém recentemente as coisas saíram de controle. Além disso, o exorcismo foi capaz de nos separar do demônio que habitava nossa carne, mas não de capturá-lo. Assim precisamos arrumar essa ponta solta, entender por que tantos eventos sobrenaturais têm ocorrido e, finalmente, achar novas pessoas que possam se juntar a Unavowed.
A premissa do jogo, por si só, não tem nada de mais. O mundo possui elementos fantásticos que não conhecíamos, protagonista entra em contato com esse mundo fantástico, protagonista entra nesse novo mundo e é um pivô em torno de grandes acontecimentos. Visto assim, sem contexto, trata-se de algo que já vimos centenas de outras vezes, de MIB a Harry Potter. O que faz Unavowed funcionar são seus personagens e o clima dele como um todo.
Trata-se de um jogo simplesmente agradável, com um mundo bem realizado que me passava uma espécie de conforto a cada novo cenário que eu alcançava. Essa Nova Iorque tem certos aspectos que podem ser comparados à estética noir, porém em lugar da noite e dos tons escuros, aqui o céu tem perpetuamente um entardecer de tom avermelhado e opressor, uma cor presente por praticamente toda a aventura. Em quase todos os momentos também há uma chuva caindo sobre nós, porém ao ser acompanhado por uma trilha que tem um quê de jazz cria-se uma aura de aconchego, que tornou delicioso passar algum tempo vendo os detalhes ao fundo nos prédios e no grafite espalhado pelos muros. A arte de Ben Chandler mostra claras melhorias em relação ao que ele fez em Blackwell, e é com certeza um dos motivos para se jogar Unavowed.
Além de terem habilidades diferentes, que permitem que você solucione os enigmas de uma maneira específica, nossos aliados têm pontos de vista próprios, expressados em comentários feitos enquanto andamos a esmo pela cidade ou quando estamos em um vagão de metrô, decidindo para onde vamos. Entre as missões é possível dialogar mais a fundo com eles e aprender sobre seus passados, mas o fato de eles não serem só mecânicas quando estamos em uma investigação é um ótimo detalhe. Eu acabava por escolher quem viria comigo não pelo que eles podiam fazer, mas por conta de eu quem eu gostava mais e de quem eu queria saber mais sobre.
O destaque fica em Eli, um homem comum que um dia descobriu ser capaz de criar fogo com as mãos e manipulá-lo. Tal qual a premissa, essa ideia por si só não soa como a coisa mais legal e original do mundo, mas são detalhes que aprendemos posteriormente que fazem com que simpatizemos com Eli. Ele tem cerca de 90 anos, mas não aparenta a idade porque Magos do Fogo vivem mais do que outros seres humanos. Como ele descobriu sua condição quando já era um homem de meia idade, Eli é conflitado com o mundo e pessoas que foi obrigado a abandonar devido aos seus poderes. Sem entrar em pormenores porque descobri-los é parte da graça, o mago ainda está tecnicamente próximo da vida que tinha e das pessoas que amava, mas impossibilitado de entrar em contato com nenhuma delas. Isso é progressivamente melhor explorado na trama, porém a melancolia que permeia Eli e as lembranças daquilo que ele um dia tinha nunca vão embora. Nem todos que acabamos conhecendo são tão fascinantes quanto ele, sendo o elo fraco Vicki, uma policial que age o tempo todo de uma só maneira e cuja habilidade é ser… amiga de todos os policiais de Nova Iorque.
Mesmo não aparecendo de maneira incrível em todos os personagens, essa característica, de se estar dividido entre dois mundos, sem mais saber direito a qual pertencem, é algo presente por toda a aventura, não só em nossos protagonistas como também nas figuras que encontramos em nossas investigações.
É isso que leva também a decisões morais sem respostas óbvias ou claras, já que comumente temos de confrontar alguém que, assolado entre um dever e um desejo, tenta resolver o dilema fazendo uso do sobrenatural. O resultado é sempre catastrófico, mas no geral quase nenhum dos antagonistas é estritamente um vilão. Tal qual os membros da Unavowed, são apenas indivíduos perdidos, de uma forma ou de outra não sendo aceitos pela cidade – elemento de fundo que une todas as histórias – e que caíram em uma situação muito ruim por conta disso.
Depois de escolhermos quais dois companheiros virão conosco em uma missão, eles não podem mais ser trocados até que aquela investigação acabe. Isso significa que, não importa por qual configuração optemos, sempre há uma solução possível para os puzzles. Aqueles que desejam por enigmas mais desafiadores sairão decepcionados. Algumas respostas são mais óbvias do que outras, mas elas são sempre claras, não importa quem esteja acompanhando você. Tal qual ocorria na série Blackwell, o foco dos desafios está em conversas com os habitantes de Nova Iorque, havendo muitos poucos casos em que temos de pegar itens, combiná-los ou usá-los pelo cenário.
Assim, é bem comum que a resposta chegue após simplesmente conversarmos com todo mundo que podemos, trazendo novas informações que obtivemos a figuras com quem já dialogamos, até solucionarmos o caso em questão. Além disso, nunca há muitos cenários a serem visitados em cada momento, o que resulta em um número baixo de interações, então a resposta aparece mesmo que você esteja perdido. Não se trata de algo cem por cento focado em narrativa como nos jogos da Telltale, mas é certamente um passo mais próximo em direção a isso quando comparado aos trabalhos anteriores da Wadjet Eye.
Eu não achei que isso tenha sido um problema. Eu gostei tanto dos membros da Unavowed, de seus passados, das conversas que eles têm entre si e da direção da história, que a ausência de enigmas mais complexos não me incomodou. A trama, por mais que tenha uma premissa bem clichê, segue uma direção legal e com uma ótima reviravolta, que me pegou completamente de surpresa e resultou em um momento emocionante e cândido.
A questão de escolha não é revolucionária aos point-and-clicks. Ela pode não ser comum, mas em Maniac Mansion já tínhamos algo similar, além de aspectos de Indiana Jones and the Fate of Atlantis, que em seu miolo continha três caminhos distintos, com soluções diferentes a serem descobertas, e isso sem falar da franquia Quest For Glory, em que podíamos escolher a classe de nosso herói. Ainda assim, ao permitir que o jogador tome uma série de decisões, o principal aspecto que é beneficiado em Unavowed é o de construção de nossa história, que é a melhor característica do jogo quando a consideramos uma combinação de sua trama, personagens e ambientação. Não se trata de algo que mudará como títulos desse tipo serão feitos a partir de agora, mas tudo bem. É mais um ótimo trabalho da Wadjet Eye.