Análise - Wattam
Quando foi anunciado em 2014 e como um jogo exclusivo do PlayStation 4, Wattam imediatamente se destacou por sua originalidade. Afinal, não é todo dia que se vê um jogo sobre fazer objetos do cotidiano (o que inclui cocôs) formarem uma grande roda para, em seguida, literalmente explodirem em riso.
Sua trajetória, contudo, foi bem turbulenta. Nessa “constipação de seis anos”, como seu criador Keita Takahashi descreve, Wattam foi cancelado pela Sony, a publisher original, e recriado do zero após um novo contrato de publicação com a Annapurna Interactive. Seis anos depois de seu anúncio original, finalmente podemos acessar mais uma vez a extraordinária mente por trás de jogos como Katamari Damacy e Noby Noby Boy — o que é sempre um raro deleite nessa indústria movida a sequências e familiaridade.
De certa forma Wattam é uma evolução natural desses jogos, explorando a relação entre espaço, escopo e proporção, e o universo das coisas e dos objetos, sem qualquer comprometimento com os padrões estéticos, mecânicos e temáticos dos videogames ou suas convenções modernas. Porém, mais do que qualquer jogo de Takahashi, o foco aqui são as emoções humanas.
O esquema de controle pode parecer estranho no começo, mas quando a gente considera os jogos anteriores do Takahashi, como o simulador de constrangimento adolescente Tanya Wanya Teens e seu gamepad especial de 16 botões frontais, fica claro que esse é provavelmente seu jogo mais simples de controlar. Como era mais comum em títulos da geração do PlayStation 2, aqui os gatilhos R2 e L2 são usados para mover a câmera. O direcional direito serve para movimentar um cursor tridimensionalmente pela tela e alternar instantaneamente o controle entre diferentes objetos.
Em Wattam, começamos na forma de um cubo solitário, que se encontra sozinho em um mundo vazio e sem luz, incapaz de lembrar dos eventos que resultaram no seu isolamento. Conforme interagimos com o que há no cenário, atraímos a atenção de outros objetos vivos e passamos a aprender mais sobre esse lugar. Sentar em uma pedra faz com que ela acorde, fazendo surgir um pequeno pedaço de terra em que uma semente faz brotar uma árvore capaz de dar frutos, por sua vez atraindo uma boca que, ao comer, faz cocôs que então atraem um vaso sanitário e por aí vai.
Meus primeiros minutos com Wattam foram marcados por sorrisos constantes e até mesmo, confesso, de algumas lágrimas de alegria, tamanha é a capacidade de seus personagens de evocar sentimentos. É impressionante como elementos tão simples, como linhas para representar braços e pernas, e alguns poucos traços para as expressões faciais, são capazes de fazer com que qualquer coisa em Wattam pareça cheia de vida e emoção, especialmente durante as brincadeiras de rodas. Essas criaturinhas que riem, correm, gritam e balbuciam sons engraçadinhos soam como crianças no horário do recreio, cuja maior preocupação é encontrar a brincadeira mais divertida possível.
Veja também Rique e Heitor jogando os 30 minutos iniciais de Wattam
Você e um segundo jogador podem controlar cada um desses objetos, alguns dos quais possuem habilidades únicas, como o ventilador, capaz de criar uma rajada de vento, ou a régua, que pode medir coisas. Quando não estão sendo controlados pelos jogadores, eles possuem autonomia, se comportando de acordo com seus interesses. Se você deixar a boca em uma área cheia de comida, por exemplo, e voltar minutos depois, vai se deparar com uma multidão de cocôs ambulantes.
Uma das ações básicas em Wattam é dar as mãos, o que te permite fazer cirandas do tamanho que desejar, incluindo quem você quiser — desde que a criatura tenha braços, é claro. Outro elemento fundamental de jogabilidade é a escalada, que faz com que os objetos possam facilmente se empilhar uns sobre os outros. Nesses momentos, para um grande efeito, o jogador sempre pode acionar uma bomba de felicidade e mandar todo mundo pelos ares em uma explosão de risos.
Muitas dessas ações estão ali apenas pelo prazer da brincadeira, mesmo quando as coisas dão errado e todos se trombam desajeitadamente. O riso é a linguagem universal desse mundo, tanto que muitos dos seus objetivos envolvem descobrir porque alguém está chorando, literalmente perguntando “o que aconteceu?” e encontrar maneiras de reanimá-lo.
Toda essa pluralidade de formas e cores se reflete na trilha sonora dinâmica, que replica muito do estilo versátil de Katamari Damacy, indo do jazz ao samba. A grande inovação é a forma como ela se monta dinamicamente de acordo com os objetos controlados. Cada criaturinha está associada a um instrumento, que passa a tocar a melodia principal da música quando assumimos seu controle. Se dermos a mão para um objeto, seu instrumento passa a complementar a melodia principal. Isso faz com que, em grandes rodas, a música ganhe múltiplas camadas melódicas, que somadas aos gritinhos infantis, traduzem muito bem a energia e o entusiasmo da brincadeira.
Conforme vamos povoando esse pedaço de terra flutuante no espaço, superfícies gigantes, igualmente dotadas de bracinhos e rostos, atracam trazendo novos amigos. Sendo elas próprias controláveis, você pode direcioná-las para outras ilhas, que vão aos poucos sendo descobertas, e transportar sua população, o que acaba sendo necessário para a realização de alguns objetivos e para dar continuidade à história. Tudo isso acontece de forma contínua e em tempo real, sem qualquer tipo de interrupção ou menus, bastando que o jogador ajuste o nível de ampliação da câmera para ter controle de objetos de diferentes proporções — de uma diminuta ova de peixe a até mesmo o sol.
Ao menos na versão para o PlayStation 4, que eu tive acesso, e na janela de lançamento, Wattam infelizmente não parece totalmente otimizado para aguentar toda essa amplitude. Quando há muitos elementos sendo processados (e isso se torna a norma após umas duas ou três horas de jogo, quando você passa a ter mais de uma centena de criaturas se movimentando e interagindo umas com as outras em seu mundo), a taxa de quadros se torna, na melhor das hipóteses, instável.
Inclusive, mais de uma vez, quando deslizei rapidamente pela lista de objetos disponíveis no mundo, o que faz com que eles sejam instantaneamente carregados, o jogo simplesmente travou na minha mão. Em outras situações, personagens entraram na geometria do cenário e desapareceram, o que me impediu de controlá-los, o que pode te obrigar a carregar um jogo salvo.
Dado que é um jogo amplamente baseado em física e experimentação, não é difícil gerar situações em que o jogo parece quebrar na sua frente e, de certa forma, isso faz parte da experiência lúdica e cômica de Wattam. Em certas situações, eu incluo até mesmo a taxa de quadros bizarra nessa categoria. Ver o jogo se retorcendo para dar conta da minha façanha de transformar todos os habitantes em ouro, concentrados em um mesmo lugar, foi algo fascinante de assistir. Os objetos começaram a se organizar sozinhos para serem transportados em grupos para outras ilhas, de forma a reduzir o processamento e normalizar a taxa de quadros.
Wattam não é tão extenso quanto os jogos anteriores de Takahashi. A progressão é totalmente linear e em quatro ou cinco horas você consegue chegar ao fim da história e liberar praticamente tudo o que ele tem a oferecer. Mas há diversos segredinhos e possibilidades que você só descobre explorando livremente suas mecânicas, e isso faz dele um playground tão divertido quanto Noby Noby Boy. Eu por exemplo, ainda estou tentando recriar o Hands Across America em Wattam, mesmo que não haja nenhuma recompensa para isso — acho. Brincar com Wattam é simplesmente fofo, engraçado e divertido. E conhecendo o trabalho de Takahashi, a brincadeira e a experimentação são uma parte importante da proposta de Wattam.
Mas, por incrível que pareça, seu elemento mais poderoso talvez seja sua mensagem. Ao viajarmos para outras áreas, fazemos amigos que falam diferentes idiomas: inglês, russo, coreano, japonês. A tradução é sempre apresentada ao jogador, mas a ideia que Wattam transmite é que, independentemente da linguagem, pessoas são capazes de se conectar e ter bons momentos juntos. Que o senso de empatia e a capacidade de ler os sentimentos dos outros superam as diferenças culturais. Que pessoas de diferentes formas, tamanhos e cores podem se comunicar e conviver pacificamente.
Isso é reflexo da própria experiência de vida de Takahashi, que após deixar a Namco Bandai, no Japão, morou no Canadá e nos EUA. Ele conta em entrevistas que sua vinda para o ocidente o fez ter contato com pessoas de diferentes nacionalidades, idiomas e culturas, algo bastante incomum no Japão. Então para ele foi admirável perceber que, apesar de todas as diferenças, as pessoas sempre encontravam uma maneira de se comunicar e se divertir.
E é isso que define Wattam. Por meio de uma trama bem simples e pelas situações que ele propõe ao jogador, ele toca diretamente na necessidade de conexão entre as pessoas para um bem maior, o que não poderia soar mais atual em nosso mundo desigual e polarizado.
Por trás de sua estética infantil, cômica e uma boa dose de ingenuidade, há uma mensagem poderosa de perdão e união, que reflete uma preocupação pelo futuro da humanidade, levando em conta, mesmo que de forma bastante alegórica e sutil, questões políticas, sociais e ambientais.
Ao transformar a brincadeira de ciranda em uma metáfora para a conciliação, Wattam carrega suas mecânicas de significados. Isso faz dele parte de uma crescente leva de jogos, como Death Stranding e Neo Cab, que propõe uma reflexão sobre a nossa realidade, encontrando neste processo novas maneiras de pensar e fazer videogames.
Wattam
Desenvolvido pela Funomena
Distribuído pela Annapurna Interactive
Disponível para PlayStation 4 e PC
Lançamento: 17 de dezembro de 2019
A análise foi feita com uma cópia do jogo providenciada pela assessoria de imprensa da Annapurna Interactive
Spider-Man: Miles Morales é um bom jogo que utiliza essencialmente as mesmas mecânicas de seu predecessor, mas que não dá tempo o suficiente para deixar seu personagem e sua trama respirarem.