Como o discurso de Emma Watson na ONU nos ajuda a entender o Gamergate
Uma guerra invisível foi instaurada no cenário de games nos últimos meses. Quase que completamente ignorada ou tratada com leviandade pela mídia brasileira, por aqui ela foi pouco repercutida, limitada à replicação caótica de informações desencontradas e muita especulação em fóruns e redes sociais. Nos EUA, ela foi assunto de inúmeros artigos e análises, tanto por parte da mídia especializada quanto dos mais respeitados veículos de comunicação. Tentar entender o movimento Gamergate (nomeado em alusão ao escândalo de Watergate) é similar à sensação de incerteza e angústia que acompanharam as manifestações que explodiram pelo Brasil em julho de 2013, com todas suas inúmeras ramificações, reivindicações e mensagens cruzadas. E, por acaso, o recente discurso de Emma Watson na ONU nos ajuda a compreender o cerne da controvérsia na qual os videogames estão inseridos. Mas, primeiro, um pouco de contexto.
Inúmeros fatores contribuíram para tornar o cenário de videogames atual muito diferente daquele que conhecíamos de dez, vinte anos atrás. Estamos em um processo de abertura e expansão artística, cultural e social, que envolve a inclusão de públicos que antes não eram legitimamente reconhecidos pela indústria, como mulheres e LGBT. E, até como reflexo desta diversificação, testemunhamos a transformação dos videogames enquantos produtos estritamente comerciais para plataformas de expressão artística, educação, objeto de estudo acadêmico etc. Essa transformação é reverberada na mídia, especialmente a norte-americana, por seu contato direto e inevitável com os principais difusores da indústria e cultura dos videogames. Com este novo cenário, gera-se o questionamento e o confrontamento da identidade tradicional do gamer, cultivada por décadas pelas grandes companhias como consumidora, competitiva e majoritariamente masculina. Bastou uma faísca, também conhecida como Zoe Quinn, para que essa composição explodisse.
Não que Quinn tivesse qualquer intenção de gerar uma revolução ou ser pivô de um dos maiores conflitos sociais (disfarçado de conflito ético) já enfrentados pela comunidade de videogames: ela foi apenas vítima da orgânica resistência da comunidade de videogames pela transformação.
Quinn, de muitas formas, representa esse novo cenário dos videogames, oposto àquele cultivado ao longo de anos pela indústria e suas mais poderosas companhias: artístico, independente, questionador, feminino. Depression Quest, uma ficção interativa criada por ela a partir de suas próprias experiências com a depressão, tem o propósito de transmitir ao jogador as condições psicológicas e as dificuldades de um indivíduo diagnosticado com a doença.
Jogos que estendem a linguagem interativa dos videogames para além da típica diversão, abordando questões da vida real e fugindo das qualidades normalmente associadas aos jogos tradicionais, como Depression Quest, Gone Home ou Dear Esther têm enfrentado muita resistência do “público tradicional”, que, na tentativa de invalidá-los, tendem a não considerá-los jogos ou banalizá-los, classificando os dois últimos de “walking simulators”, por exemplo. Também me parece ser uma implicante resposta à aclamação da mídia a esses jogos, principalmente dos veículos em sintonia com esse novo movimento dos videogames.
Contudo, ao contrário de Gone Home e Dear Esther, Depression Quest é obra de uma única mulher. Sua tentativa de levar seu jogo ao Steam (uma plataforma que, semanalmente, publica dezenas de jogos independentes) resultou em níveis alarmantes de hostilização e ameaças da chamada “minoria vocal” (como a massa conservadora e reacionária tem sido adequadamente intitulada) contra Quinn, pelo simples fato de seu jogo ter sido tratado com relevância pela mídia. O mesmo já havia acontecido com Anita Sarkeesian, furiosamente reprimida pela mesma massa por se propor a analisar a desigualdade de gênero nos videogames. Mas, tal como Sarkeesian, Quinn recebeu apoio de pessoas que reconheciam o valor de seu trabalho e deu continuidade ao processo de publicação do jogo no Steam. Mas a proeminência da desenvolvedora só contribuiu para o que viria a acontecer a seguir.
Pouco depois do lançamento do jogo na plataforma da Valve, seu então ex-namorado Eron Gjoni deu início a uma campanha de difamação contra Quinn, acusando-a de ter se relacionado com um jornalista do Kotaku para promover seu jogo. Diferentemente do que Gjoni havia dito, contudo, o jornalista nunca escreveu sobre Depression Quest e seu único texto envolvendo Quinn havia sido publicado antes de seu relacionamento com ela, que de fato existiu. O post em seu blog imediatamente se transformou em uma incontrolável onda de ódio e fúria fomentada pela tal minoria vocal, que mais preocupada em vilanizar Quinn e a mídia do que checar a veracidade das acusações, criou a maior tempestade de merda vista há muito tempo pela comunidade de games. Foram dias sombrios.
Não apenas Quinn passou a ser ofendida, perseguida, ameaçada e hackeada, mas também aqueles que deram algum apoio à desenvolvedora, mais notoriamente Phil Fish, que teve dados confidenciais pessoais e de sua empresa, a Polytron, invadidos e divulgados publicamente. Nem o querido Tim Schafer foi poupado de ataques menores, por apoiar Sarkeesian no meio da história. A mídia em geral, que responsavelmente evitou replicar as acusações infundadas de Gjoni, típicas de um relacionamento mal resolvido, e a consequente e incontrolável violação de privacidade de Quinn, foi acusada de corrupta por não validar a ira da massa indignada. Criou-se, então, um enorme abismo entre o “gamer” e os comunicadores, que passaram a instituir sua morte simbólica, dada a associação da palavra com as atitudes reacionárias e misóginas da minoria vocal.
Identificar como, em meio à tudo isso, o movimento Gamergate surgiu é como lidar com uma conspiração. De um lado, acusações de Quinn de que ele foi engendrado por usuários do 4Chan em um grupo no IRC (registrado em inúmeras screenshots) por aqueles que miravam sua integridade e a da mídia. Do outro, acusações de que a mídia estaria se organizando “por trás das cortinas” para controlar a informação e manipular a opinião pública através de uma lista de e-mails secreta. O fato de a campanha inicialmente ter sido movimentada principalmente por contas falsas no Twitter (as chamadas sockpuppets), supostamente criadas e mantidas pela mesma organização que deu início ao movimento ou simpatizantes, para atacar Quinn e a mídia, contribuem para a autenticidade da versão de Quinn, tal como a decisão da moderação do 4Chan de apagar tópicos envolvendo o Gamergate, para evitar novas violações de regras da comunidade e possíveis ataques.
O fato da hashtag #Gamergate ser usada tanto pelos mais sensatos e ponderados quanto pelos mais reacionários e agressivos, concentrando tanto perspectivas legítimas quanto pura trollagem, mostra o quão difuso e caótico tem sido o diálogo. E, neste esse mar de opiniões, acusações e ofensas, a coisa mais clara e evidente é que, tudo isso, parece ser apenas reflexo do sexismo latente e institucionalizado que permeia a comunidade de games – e, bem, todo o resto do mundo.
Se não fosse pela desigualdade de gênero, todo o movimento #gamergate sequer teria acontecido. Quinn e Sarkeesian, nomes que frequentemente acompanham a hashtag, são claramente as maiores vítimas: ambas passaram a buscar refúgio e segurança na casa de amigos, com medo das constantes ameaças de morte e estupro. Mas elas não foram as únicas. A respeitada jornalista Jenn Frank abordou as “táticas terroristas” usadas para afugentar a desenvolvedora e a crítica em seu artigo no The Guardian. Enquanto escrevia a matéria, ela própria foi vítima das torturas psicológicas abordadas em seu texto e, após ser hostilizada com a publicação, ela decidiu abandonar o jornalismo de games. E, nesta guerra em que mulheres são os maiores alvos, a indústria inteira é prejudicada. Enquanto víamos a comunidade de games pegar fogo, a cultura e a indústria de games era taxada de misógina por quem via de fora. Sem falar de potenciais novas desenvolvedoras de jogos que, sentindo-se ameaçadas, foram desencorajadas a seguir uma carreira.
Ataques às mulheres são consequência da nova diversidade dos jogos, que por sua vez é reflexo do processo à igualdade de gênero e equilíbrio social. Qualquer grande mudança desperta sentimentos contrários a ela, principalmente em meios tão homogêneos e dominados por um único tipo de público e pensamento, como foi o de videogames durante muitos anos. Na minha matéria Os motivos (e os males) do sexismo na indústria de games, publicada no Arena iG em 2012, Kirsten Forbes, ex-produtora executiva da Radical Entertainment, me disse: “Uma vez que as ideias que grupos homogêneos trazem para a mesa são semelhantes, não há novos pensamentos, perspectivas. Todos estão operando com preconceitos, experiências e filtros mentais semelhantes”. E a entrada de mulheres é a disrupção desse pensamento como a única forma de reger o mundo dos videogames.
É por isso que o poderoso discurso de Emma Watson na Organização das Nações Unidas, em Nova York, no sábado (20), durante o lançamento da campanha HeForShe, diz tanto sobre o atual cenário da comunidade de videogames. O movimento é focado em atrair a atenção dos homens para os problemas da desigualdade de gênero e, em seu discurso, Watson deixa clara a necessidade de acabar com o ódio envolto nesse tipo de transformação social. “É hora de começar a ver gênero como um espectro ao invés de dois conjuntos de ideais opostos”, ela diz, após convocar os homens, que também são vítimas inadvertidas do problema, para participarem da ação.
Em um período tão turbulento para o meio de videogames, com tantas mensagens diluídas e conflitos nebulosos, o discurso de Emma nos ajuda a dar um norte aos nossos pensamentos. “Nós não falamos com muita frequência sobre como os homens são aprisionados pelos esteriótipos de gênero, mas eu posso ver que eles são. E quando eles estiverem livres, as coisas vão mudar para as mulheres como consequência natural. Se homens não precisam ser agressivos, as mulheres não serão obrigadas a serem submissas. Se homens não precisarem controlar, as mulheres não precisarão ser controladas. Tanto homens quanto mulheres deveriam ser livres para serem sensíveis. Tanto homens e mulheres deveriam ser livres para serem fortes.”
A mensagem que fica é: esse problema também é meu e seu. Fecharmos os olhos para ele e ignorarmos sua existência é dar a permissão para que ele continue existindo. Homens não perderão seus inúmeros privilégios ao aceitarem a transformação, apenas os estenderão para as mulheres e diferentes grupos sociais. Jogos tradicionais não deixarão de existir, apenas teremos novos e mais diversificados tipos de experiências para aproveitarmos sozinhos ou com os amigos. Eventos de games não se tornarão menos interessantes por não objetificarem sexualmente as mulheres, apenas as deixarão mais confortáveis para também participar. Estamos caminhando para um cenário melhor para todos. O tempo que levaremos para chegarmos até lá, contudo, depende das nossas perspectivas e atitudes.
Caso já não tenha feito, recomendo que você tome alguns minutos para assistir ao discurso de Emma Watson na ONU. Ou então, leia sua tradução, abaixo:
Hoje estamos aqui lançando a campanha HeForShe. Eu estou falando com vocês porque precisamos de ajuda. Queremos acabar com a desigualdade de gêneros – e pra fazer isso, todo mundo precisa estar envolvido. Essa é a primeira campanha desse tipo na ONU. Precisamos mobilizar tantos homens e garotos quanto possível para a mudança. Não queremos só falar sobre isso. Queremos tentar e ter certeza que é tangível. Eu fui apontada como embaixadora da boa vontade para a ONU Mulheres há seis meses e quanto mais eu falava sobre feminismo, mais eu me dava conta que lutar pelos direitos das mulheres muitas vezes virou sinônimo de odiar os homens. Se tem uma coisa que eu tenho certeza é que isso tem que parar.
Para registro, feminismo, por definição é a crença de que homens e mulheres devem ter oportunidades e direitos iguais. É a teoria da igualdade política, econômica e social entre os sexos.
Eu comecei a questionar as suposições baseadas em gênero há muito tempo. Quando eu tinha oito anos, fui chamada de mandona porque eu queria dirigir uma peça para nossos pais – mas os meninos não foram. Aos quatorze anos, comecei a ser sexualizada por certos elementos da imprensa. Com quinze anos, minhas amigas começaram a sair de seus adorados times esportivos porque não queriam parecer masculinas. Aos 18, meus amigos homens não podiam expressar seus sentimentos.
Eu decidi que eu era uma feminista. Isso não parecia complicado pra mim. Mas minhas pesquisas recentes mostraram que feminismo virou uma palavra não muito popular. Mulheres estão escolhendo não se identificar como feministas. Aparentemente, eu estou entre as mulheres cujas opiniões são vistas como muito fortes, muito agressivas, isoladoras e anti-homens. Não atraentes, até. Por que a palavra se tornou tão desconfortável?
Eu sou da Inglaterra e eu acho que é correto ser paga nas mesmas proporções que meus colegas de trabalho do sexo masculino. Eu acho que é correto que eu possa tomar decisões sobre meu próprio corpo. Eu acho que é correto que mulheres estejam envolvidas e me representando em políticas e decisões que afetam minha vida. Eu acho que é correto que, socialmente, eu receba o mesmo respeito que homens. Mas infelizmente, eu posso dizer que não existe nenhum país no mundo em que todas as mulheres possam esperar ver esses direitos.
Nenhum país do mundo pode dizer ainda que alcançou igualdade de gêneros. Esses direitos, eu os considero direitos humanos, mas eu sou uma das sortudas. Minha vida é de puro privilégio porque meus pais não me amaram menos porque eu nasci filha. Minha escola não me limitou porque eu era menina. Meus mentores não presumiram que eu poderia ir menos longe por um dia poder dar a luz a uma criança. Esses influenciadores são os embaixadores na igualdade de gêneros que me fizeram ser quem eu sou hoje. Eles podem não saber, mas são os feministas que estão mudando o mundo atualmente. Precisamos de mais dessas pessoas. E se você ainda odeia a palavra, não é ela que é importante. É a ideia e ambição por trás dela, porque nem todas as mulheres receberam os mesmos direitos que eu. De fato, estatisticamente, muito poucas receberam.
Em 1997, Hillary Clinton fez um famoso discurso em Pequim sobre os direitos das mulheres. Infelizmente, muito do que ela queria mudar ainda é verdade hoje. Mas o que me impressionou foi que menos de 30% da audiência era masculina. Como nós podemos efetivar a mudança no mundo quando apenas metade dele é convidada ou se sente bem-vinda a participar da conversa? Homens, eu gostaria de aproveitar essa oportunidade para apresentar o convite formal. Igualdade de gêneros é seu problema também. Por que, até hoje, eu vejo o papel do meu pai ser menos valorizado na sociedade, mesmo tendo precisado dele na infância tanto quanto precisei da minha mãe. Eu vejo jovens homens sofrendo de distúrbios psicológicos, incapazes de pedirem ajuda por medo de que isso os torne menos homens. De fato, no Reino Unido, suicídio é a maior causa de morte entre homens de 20-49 anos, superando acidentes de carro, câncer e doenças de coração. Eu vi homens frágeis e inseguros sobre o senso distorcido do que constitui o sucesso masculino. Homens também não têm o benefício da igualdade.
Nós não falamos com muita frequência sobre como os homens são aprisionados pelos esteriótipos de gênero, mas eu posso ver que eles são. E quando eles estiverem livres, as coisas vão mudar para as mulheres como consequência natural. Se homens não precisam ser agressivos, as mulheres não serão obrigadas a serem submissas. Se homens não precisarem controlar, as mulheres não precisarão ser controladas. Tanto homens quando mulheres deveriam ser livres para serem sensíveis. Tanto homens e mulheres deveriam ser livres para serem fortes.
É hora de começar a ver gênero como um espectro ao invés de dois conjuntos de ideais opostos. Deveríamos parar de nos definir pelo que não somos e começarmos a nós definir pelo que somos. Todos podemos ser mais livres e é isso que HeForShe é sobre. É sobre liberdade. Eu quero que os homens comecem essa luta para que suas filhas, irmãs e esposas possam se livrar do preconceito, mas também para que seus filhos tenham permissão para serem vulneráveis e humanos e fazendo isso, sejam uma versão mais honesta e completa de si próprios.
Você pode pensar: Quem é essa menina de Harry Potter e por que ela está discursando na ONU? É uma boa questão e acreditem em mim, eu tenho me perguntado a mesma coisa. Tudo que eu sei é que eu me importo com essa questão e eu quero melhorar isso. E tendo visto o que eu vi e sendo apresentada com a oportunidade, eu sinto que é minha responsabilidade dizer algo. Edmund Burke disse: ‘Tudo que é preciso para que as forças do mal triunfem é que bons homens e mulheres não façam nada’.
Enquanto elaborava esse discurso e em momentos de dúvidas, eu perguntava pra mim mesma: se não eu, quem? Se não agora, quando? Se você tem as mesmas dúvidas quando uma oportunidade é apresentada para você, eu espero que essas palavras possam ajudar.
Porque a realidade é que se a gente não fizer nada, vai levar 75 anos, ou até eu ter quase 100 anos para que as mulheres possam receber os salários que os homens, para o mesmo tipo de trabalho. 15,5 milhões de garotas vão se casar nos próximos 16 anos como crianças. E no ritmo atual, vai levar até 2086 para que todas as garotas da África possam receber educação fundamental.
Se você acredita na igualdade, você pode ser um desses feministas que não sabem sobre os quais eu falei mais cedo. E por isso, eu te aplaudo. Estamos lutando, mas a boa notícia é que temos um movimento unido. É chamado HeForShe. Eu convido você a ir em frente, ser visto e se perguntar: se não eu, quem? Se não agora, quando?