A música mutante de Disasterpeace
Richard Vreeland, o Disasterpeace, havia acabado de completar 30 anos quando o encontrei nas mesinhas coloridas do restaurante ao ar livre do Centro Cultural São Paulo. Conhecido por suas trilhas sonoras emblemáticas, como a de Fez e do filme de terror de 2014 It Follows, lançado no Brasil em 2015 com o péssimo título Corrente do Mal, Vreeland veio a São Paulo para representar a equipe por trás de Mini Metro, que concorreu aos prêmios de melhor jogo, melhor gameplay e melhor som no BIG Festival.
Poucos minutos após sua chegada, eu, Vreeland e Piotr Iwanicki, designer de Superhot, que também havia se juntando a nós, estávamos inutilmente estapeando o ar, na tentativa de nos livrarmos de uma abelha enxerida, provavelmente atraída pelas gotas de refrigerante que eu havia acidentalmente espirrado sobre a mesa. “O engraçado é que são três homens crescidos com medo dessa coisinha”, brincou Piotr.
Enquanto abria minhas anotações para dar início à entrevista, notei que ela já havia começado, com Richard falando sobre uma instalação artística chamada Pollinator Synthesizer, vista por ele recentemente no Moogfest, na qual, a partir dos movimentos de abelhas em uma colmeia, uma trilha sonora procedural era gerada no ambiente. Pergunto a ele se este tipo de experimentação musical é o que o tem mais interessado ultimamente, levando em consideração a trilha sonora totalmente procedural de Mini Metro.
“Sim, essa é uma das áreas que eu realmente me interesso”, assume. “Explorar diferentes estruturas musicais e maneiras distintas de criar música. Acho que parte disso é porque já atingi o meu limite com relação à minha habilidade de tocar. Isso é mais ou menos o quão bom eu posso ser [como compositor]. Então tenho vontade de explorar outras coisas, como o processo de se fazer música.”
Essa compreensão tem levado Richard a explorar outras mídias. Um de seus trabalhos recentes foi a trilha sonora de um espetáculo de dança intitulado Mud Water, que mistura balé e street dance, o que o levou a cruzar estilos diferentes, como música clássica e hip hop.
Conforme ia mencionando seus inúmeros interesses e projetos pessoais — áudio espacial (spatial audio), construção de plugins e ferramentas de composição em softwares, um álbum solo de piano, um projeto de arte com um acrobata — ficava evidente que Richard era aquele tipo guiado pela curiosidade e vontade de explorar coisas novas. De repente, para mim, ele deixou de ser o cara que tinha feito a trilha sonora de Fez para se tornar algo muito maior.
E mesmo que videogames continuem sendo seu foco, seus projetos mais recentes nesta mídia têm refletido essa sua necessidade de se desafiar. Seu trabalho em Mini Metro, por exemplo, envolveu a construção de uma engine só para a música, que trabalhava paralelamente à engine do jogo, unicamente com o propósito de gerar um ambiente sonoro procedural, que segue o desenrolar da experiência de cada jogador.
O jogo como um instrumento
Seu interesse em música procedural começou com um jogo chamado January, feito inteiramente por ele entre 2009 e 2011. “Eu estava procurando por uma desculpa para fazer um jogo e eu descobri o Flixel, uma biblioteca de action script open-source criada pelo Adam Saltsman, de Canabalt. Havia uma série de tutoriais e um deles ensinava como fazer um shmup horizontal. E é muito simples: você tem os inimigos vindo em sua direção, os tiros deles e a sua nave. Eu basicamente peguei isso, rotacionei, transformei a nave em um homenzinho e os projéteis em flocos de neve. A partir deste processo eu basicamente aprendi o básico da programação orientada a objeto. Eu não sabia que ele acabaria virando um jogo musical, na verdade, mas em um certo ponto eu pensei ‘acho que preciso de algo mais neste jogo além de um homem comendo flocos de neve'”.
Richard, então, começou a experimentar conceitos de geração de música em January baseados nas cadeias de Markov, um modelo matemático que determina a sequência de probabilidades de estados de um objeto. “Eu basicamente cheguei numa lógica em que, ‘se a nota for essa, então toque uma dessas outras notas’, e assim sucessivamente. Então eu criei essas árvores lógicas para todos os diferentes tons e modos.” Em outras palavras, Richard criou uma espécie de sistema de improvisação musical, que se torna um brinquedo encantador nas mãos de qualquer pessoa dotada de uma certa sensibilidade sonora.
O trabalho de Richard em Mini Metro dá continuidade a estes conceitos de musica generativa. “É mais baseado nessa ideia de serialismo, que é um estilo musical da metade do século 20, no qual você tem uma sequência de valores que pode ser aplicada nas dinâmicas de um som, como notas, ritmos e a suavidade ou dureza do ataque. E tudo isso está atrelado aos dados do jogo.”
Em cada nível há uma longa série de notas contínuas, cada uma delas associada a uma linha de trem, que tocam simultaneamente conforme elas são criadas pelo jogador — o vídeo abaixo exemplifica com clareza. O surgimento de passageiros nas estações e o embarque em cada trem exercem o papel da percussão. À medida que o jogador progride, ampliando sua malha metroviária e lidando com um número cada vez maior de passageiros, estações e trens, mais denso vai se tornando o ambiente sonoro, culminando em uma experiência musical relaxante e envolvente.
Richard assume que o sistema musical foi tão intrincadamente construído sobre a estrutura do jogo que há situações em que ele é responsável por elementos do próprio gameplay. “É ele que determina a frequência de passageiros, por exemplo, então eu tinha que tomar cuidado com o que fazia, pois se tornava muito fácil, assim, fazer alguma modificação no áudio e destruir o jogo inteiro.”
Surpreendentemente, Mini Metro nasceu sem este sistema musical, que foi desenvolvido por Richard e a equipe (composta pelos irmãos Peter e Robert Curry, além do designer gráfico Jamie Churchman) depois que o jogo havia sido lançado, e adicionado em uma atualização. “Ele tinha apenas um sistema de relógio, que determina a passagem do tempo, então o sistema musical foi construído em cima dele”, explica, o que garantiu a sincronização entre a camada de jogo e a de música. “É meio que uma gambiarra, mas funciona.”
O elo musical entre Fez e It Follows
Não demorou muito até que eu direcionasse nossa conversa para Fez e sua brilhante trilha sonora. Enquanto o jogo passava pelo seu longo período de desenvolvimento, entre 2007 e 2012, Richard já mesclava rock progressivo, guitarras e chiptune, tocando com amigos em uma turnê ao redor dos EUA. “Certa vez fizemos um show em Montreal, no Canadá, e o programador de Fez, Renaud Bédard, nos assistiu e disse que estavam [ele e Phil Fish] procurando por diferentes músicos, pois queriam trabalhar na trilha sonora do jogo como se fosse um álbum de compilação de diferentes artistas, e gostariam da minha contribuição. Eu sugeri que a trilha fosse feita por um único compositor e me propus escrever todas as músicas.”
Richard conta que assim que conversou com Renaud e percebeu que iria trabalhar em Fez, ele correu para casa e escreveu imediatamente Adventure, “que é como a música título da trilha sonora”. Então, sim, a primeira música do álbum é também a primeira música composta por Richard para o jogo.
“Eu basicamente havia sacado a estética ali e então conversamos como a música dentro do jogo seria, se aquela faixa era adequada — ela tem bateria, saca? Tem uma batida — ou se seria mais esparsa e ambiente. A verdade é que estávamos bem sintonizados. É uma situação muito favorável, quando você está trabalhando com pessoas que possuem uma visão muito similar.”
O trabalho de Richard não se limitou a escrever as músicas e receber seu pagamento. Ele se tornou tão envolvido criativamente com Fez que Renaud construiu para ele uma ferramenta que permitia que seu trabalho dialogasse com o jogo em si. “Ela me deixava, por exemplo, mudar a música de acordo com o período do dia dentro do jogo — então ela variava conforme amanhecia, entardecia, anoitecia. Era possível fazer coisas como mudar a música com base na altitude da fase — algumas delas são bem verticais. Coisas como sincronização… há uma parte do jogo que se passa em um cemitério, onde existem esses relâmpagos. Eu queria imitar o comportamento de um trovão com a música, então eu escrevi uma que eram só esses oito ‘booms’ intensos, com grandes acordes, seguidos de sons que parecem gotinhas cristalinas”.
Richard reproduz, então, com a voz e gestos, os sons que compõem a música, tirando uma gargalhada de Piotr — e me lembrando que ele ainda estava ali, atentamente acompanhando a conversa. “Eu podia deixar esse boom tão longo ou curto quanto quisesse, e criamos um sistema no qual eu determinava uma extensão aleatória para quando o próximo ‘boom’ fosse ativado. Então a música se parece com um trovão, porque você nunca sabe quando o próximo ‘boom’ vai acontecer.”
Talvez não seja mera coincidência que David Robert Mitchell, o diretor de It Follows, tenha abordado Richard para compor a trilha para seu filme — além do fato de que foi jogando Fez que ele teve contato com o trabalho de Disasterpeace, como o próprio Richard me contou. Além de possuírem uma sonoridade lo-fi distorcida, como se tocassem de uma fita cassete antiga, as músicas do jogo mesclam sentimentos de melancolia e solidão, mantendo suspensa uma certa inquietação, como se algo misterioso ou sinistro estivesse para acontecer.
Querendo ou não, Richard compôs uma trilha que se encaixava muito bem em um filme de terror, e é certo que Mitchell acabou percebendo isso ao jogar Fez, ou ele — revelou Richard, para minha surpresa — não a teria usada como trilha provisória de It Follows. “Foi até difícil, por que eu tive que fazer uma trilha melhor para It Follows, a partir das músicas que eu mesmo havia composto para Fez”, conta Richard, em tom irônico.
O ponto de partida para a música do filme foi Death. Repare como o tema principal possui algumas semelhanças a ela, em termos de timbre, melodia e estrutura:
Como se a proximidade entre It Follows e Fez já não parecesse bastante, Richard me conta algo ainda mais incrível. “Para a maior parte da trilha eu podia criar coisas novas, e ele [Mitchell] ficava satisfeito, mas houve momentos em que eu tinha uma grande dificuldade em compor algo novo que ele gostasse mais do que as músicas de Fez que ele botou no filme anteriormente. Então tem uma música — nós tivemos apenas três semanas para criar a trilha do filme então eu não tinha muito tempo — em que eu tentei algo novo e ele falava ‘não, isso não tá funcionando tanto quanto a música do Fez’. Fizemos muitas iterações e eu não conseguia chegar no ponto certo. Aí eu acabei pegando a música de Fez que fazia parte da cena na trilha provisória, mudando algumas notas, mas mantendo a mesma sonoridade e a mesma estrutura, e ele veio todo ‘oh, isso tá perfeito!’.
Talvez a semelhança entre as duas músicas já seja de conhecimento público, mas ver seu próprio criador assumir que, por pressão, copiou a si próprio, é de uma transparência e honestidade inspiradora — além de um fato meio absurdo. E, mantendo seu bom humor, ele ainda me incentivou: “Você pode literalmente sobrepô-las, tipo canal esquerdo e canal direito, ou vídeos no youtube simultâneos, saca?”
Pergunto a Richard se trabalhar em trilhas sonoras também envolve uma expressão individual sua, a mesma que ele inevitavelmente aplica quando está trabalhando em um álbum próprio. ““É similar, mas diferente”, ele responde. “Eu gosto muito de fazer músicas por ‘encomenda’, porque me força a me mover para direções criativas que normalmente eu não iria, e acaba me levando a lugares muito estranhos. Eu nunca estive muito interessado em filmes de terror e fazer a trilha para um foi muito interessante pra mim. Eu fiz trilha noir de detetive, marchas orquestrais, blues, coisas que normalmente eu não faço. Como um artista isso é um exercício interessante. É como realizar um estudo, como fazer pesquisa.”
E o que seria mais fácil: compor a trilha para jogos ou filmes? “Jogos tendem a ter um espaço de possibilidades muito maior, por que não estou apenas pensando no estilo da música, mas também na estrutura e na não linearidade dela, na tecnologia por trás dela”, explica. “Quando eu trabalho num filme eu não preciso pensar nisso tudo, é só você acertar na música.”
Enquanto falávamos sobre músicas procedurais, lembrei algumas vezes de David Kanaga, um dos expoentes da música dinâmica e experimental nos videogames, responsável pelas trilhas de Dyad, Proteus e Panoramical. Antes de encerrarmos a conversa, acabei soltando um “você realmente deveria fazer uma parceria com o David Kanaga”, ao que ele respondeu, calmamente: “Mas eu estou trabalhando com David Kanaga”. O mundo é realmente muito pequeno ou talvez eu esteja ficando previsível, pensei.
“Estamos fazendo um jogo chamado Beasts of Balance. Antes era conhecido como Fabulous Beats, quando foi financiado no Kickstarter, no início de 2016.”
Beasts of Balance é uma mistura de jogo analógico e digital. Em uma plataforma conectada via bluetooth a um tablet ou smartphone, os jogadores precisam cooperativamente empilhar animais geométricos, intercalando-os com peças especiais e tentando manter o equilíbrio da estrutura a todo custo. Na tela, vemos como as peças interagem e se fundem, dando origens a novas e exóticas criaturas.
“Tem sido até que bem desafiador”, conta Richard, sobre seu trabalho com Kanaga em Beasts of Balance. “O sistema musical basicamente tenta acompanhar as permutações entre os animais com ‘frases musicais’ que são ativadas com probabilidade e tal. A ideia é meio que uma abordagem de hip-hop, usando samples, mas não soa exatamente como hip-hop.”
Você também pode ouvir a música de Disasterpeace em jogos como o RPG Hiper Light Drifter e o platformer musical Runner 2: Future Legend of Rhythm Alien, cujas trilhas estão disponíveis em seu site pessoal.