Persona 5 e a rebeldia contra o mundo adulto

A série Persona, especialmente desde o terceiro jogo, nunca se acovardou de falar de assuntos complexos. Morte, suicídio, a percepção distorcida que os outros têm de nós. Todos esses já foram temas tocados pelos títulos e, mesmo que complicados, sempre foram largamente bem abordados, sendo vistos em tons de cinza, e não como questões que têm respostas fáceis.

Mesmo com esse passado repleto de sucessos, Persona 5, no entanto, é provavelmente aquele que melhor consegue desde o começo delinear seu principal tema e fazer comentários constantes e progressivamente mais profundos sobre o mesmo a cada passo dado na história. O novo título da Atlus, por mais que também toque em outros assuntos, é principalmente sobre a rebeldia necessária contra o mundo adulto ou, mais especificamente, a importância da ruptura com regras e elementos já estabelecidos, presentes ali apenas para oprimir e obrigar todos a seguirem o mesmo caminho não importa o quão sofrido isso seja.

Isso nem sempre aparece subjetivamente. Os personagens, em seus alter egos do Metaverse — o mundo das sombras, projeções da psique humana — são ladrões, sempre com o objetivo de roubarem um pertence escondido no ponto mais distante de uma fortaleza. Apropriadamente, as máscaras que usamos no dia a dia da sociedade — nossas Personas — manifestam-se aqui fisicamente, nos rostos de nossos heróis, presentes o tempo todo como um lembrete de que precisam ser arrancadas de novo e de novo, um peso constante que nos segue. Não basta uma única realização, o conhecimento de que elas existem. Livrar-se dos preconceitos e ideias que outros, e nós mesmos, temos de nós é um exercício perpétuo e um que nunca é fácil.

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É fora do Metaverse, no entanto, que a temática surge de maneira mais interessante e complexa. Muito diferente de seus dois predecessores, nosso protagonista é de cara tratado como alguém indesejado, alguém que – por motivos de uma rebeldia, vista por ele como necessária naquele momento para impedir uma injustiça de ser executada – é imediatamente tratado como um pária na sociedade, um indivíduo com uma ficha criminal que funciona como uma mancha, que talvez o seguirá por toda a vida.

O que isso provoca é um ambiente no qual ninguém quer, inicialmente, a nossa companhia. Enquanto em Persona 3 e 4 tínhamos o conforto de lugares seguros, como os outros estudantes que estavam investigando o Tartarus ou Nanako e nosso tio, em Persona 5 todas essas redes que são esperadas por um adolescente ainda incapaz de prover para si mesmo e sobreviver no mundo são retiradas. Em vez disso, as figuras que justamente deveriam ser aquelas que oferecem proteção — a paterna, professores, políticos etc – são aquelas que mais despejam preconceitos, insatisfeitos com a ideia de que alguém que esteja saindo mesmo que minimamente da linha tenha caído sob a tutela deles. Aos olhos desses, jovens quebrados são apenas fardos.

Essa ideia é reforçada por pequenos toques como a pequena quantidade de indivíduos com os quais podemos conversar. Em vez de sermos bem recebidos como o fomos na escola de Inaba em Persona 4, por exemplo, aqui os rumores sobre nosso passado rapidamente se espalham. A consequência é que boa parte dos diálogos existentes no dia a dia não permitem nossa participação, mas apenas que os ouçamos. Como uma sombra, que está presente mas não pode tocar nada material, só podemos saber das conversas que estão ocorrendo, mas não participar das mesmas. E, ironicamente, muitas delas são justamente fofocas sobre nossa pessoa, ecos breves e constantes que nos seguem quando andamos pelos corredores. Saia da linha uma vez e você é expulso do diálogo ao mesmo tempo que se torna o centro dele, sem mais ter chance de se defender. É um terrível isolamento.

Fora da escola as fofocas não são mais sobre nós, mas o sentimento de solidão só se propaga. Em uma cidade grande, vemos dessa vez inúmeras pessoas andando pela rua mas, tal qual em uma metrópole, a possibilidade de interação com elas é nula. A maior parte nos veria apenas como incômodo, um empecilho entre o local em que estão e onde querem chegar. Reforçando isso, por mais que provavelmente também seja dessa maneira por motivos técnicos, houve uma escolha artística por representar esses outros indivíduos como pessoas sem rosto, muitas vezes com cores mais brandas, como fantasmas caminhando ao nosso redor. Muitas delas vagam com ombros e costas curvados, um símbolo óbvio, porém funcional, de derrota e desânimo.

Seguindo um pouco o padrão de seus antecessores, porém aqui com mais significado, aqueles que entram em nosso grupo acabam sendo pessoas que, a princípio, nunca pareceriam se encaixar ao lado daqueles considerados como excluídos pela sociedade. O motivo está no fato de que os julgamos inicialmente apenas por conta daquilo que eles transparecem no exterior, porém quanto mais os temas ficam claros, mais evidente fica que essa aparência é uma forçada, apenas pedida por aqueles que regem a sociedade e esperam pelo impossível desses jovens. Se eles parecem frios, distantes e, por assim dizer, perfeitos demais para estarem ao nosso lado, é porque também são vítimas.

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A consequência disso é o início de um questionamento. Será então que todas aquelas vozes, estejam elas fofocando sobre nós ou não, estão passando pela mesma coisa? Será então que a aparência delas pertencerem a esse ambiente que tão prontamente nos cuspiu não é nada mais do que isso, uma aparência? Quando a presença dos Phantom Thieves — o grupo composto de você e outros usuários de Persona, capazes de roubar os corações de indivíduos mais distorcidos — começa a se tornar mais forte, existem evidências que apontam que essa linha de pensamento pode estar correta, especialmente dado o distanciamento e frieza com a qual colegas tratam seus próximos, mesmo quando eles estão passando pelas mesmíssimas coisas. Porém é tudo bem subjetivo.

Uma realização também vem à tona com o progredir da aventura. Ao fazer conexões sociais, um aprofundamento de algumas amizades que tornam nossos poderes no Metaverse maiores, algo fica evidente. Existem certos adultos que acabam se aproximando de nós, diferente daqueles outros que nos enxergam como obstáculos. A diferença para esses, entretanto, é que quanto mais nos aproximamos, mais percebemos que eles também são quebrados. Também párias a uma sociedade que exige uma perfeição e destacamento impossíveis de serem alcançados sem que algo dentro de nós morra no processo. Talvez o ponto mais certeiro dessas conexões sociais esteja em como o jogo mostra que essas pessoas não são infelizes pelo que elas se tornaram, mas que não tenham sido aceitas por quererem ser como são. Algumas vezes essa imagem da rebeldia também existente no mundo adulto é um tanto na sua cara — como uma médica que se veste com uma roupa tipicamente associada à cena punk –, mas no geral Persona 5 é mais sutil do que isso.

Me parece claro que muito disso fala especificamente da sociedade japonesa e a pressão que ela coloca em seus jovens. Um dos charmes de Persona é o fato de que, enquanto estamos lutando contra figuras monstruosas e possivelmente salvando o mundo, ainda temos que achar tempo para estudar e irmos bem em nossas provas, por exemplo. Mecanicamente isso é sempre interessante, mas aqui ganha um novo significado. Ao mesmo tempo que lutamos contra a opressão causada pelo mundo adulto, temos que seguir à risca as regras impostas por eles ou teremos consequências. Nem o desejo por algo diferente pode ser percebido.

Dito isso, creio que independente de qual lugar do mundo tenhamos vindo, é possível nos identificarmos com esse tema, especialmente dado que tais barreiras existem fortemente em nossa sociedade, apenas de maneiras distintas. Exemplo disso é Night in the Woods, que coincidentemente foi lançado próximo de Persona 5 e que tem coisas similares a dizer, porém de um ponto de vista ocidental. Isso, no entanto, serve como prova de que, mesmo com algumas diferenças, aquilo que é apontado pelo novo título da Atlus pode ser compreendido por qualquer um que esteja disposto a admitir suas próprias dificuldades e compreenda que existem forças em entendermos essas fraquezas.

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No fim, talvez o melhor exemplo de como isso aparece esteja na forma que nossos protagonistas invocam suas Personas. Esse ato já teve conotações bem pesadas, como quando em Persona 3 temos de dar tiros em nossas cabeças com um “Evoker”, um item bem similar a uma arma, para que esse poder se manifeste. Aqui, os heróis têm de forçadamente arrancar de seus rostos a máscara que os cobre e, tomando como regra a animação que introduz esse momento a cada um de nossos personagens, trata-se de um ato difícil e dolorido, quase como se um pedaço de sua própria pele fosse rasgado à força. De alguma forma, há uma violência nisso maior do que a referência a suicídio de Persona 3.

Por um lado esse ato reforça a ideia do crescimento doloroso pelo qual esses jovens tiveram de passar, sem o amparo daqueles que deveriam justamente estar ali para ajudar e que, pelo contrário, tornaram-se vilões e barreiras. Por outro, é também um lembrete de que lidar com esses problemas existentes em nosso caminho, que encontrar uma forma de termos uma voz e, em seguida, fazermos com que ela seja ouvida, é um processo constantes que nunca se tornará mais fácil. Sempre será necessário cavar mais fundo e admitirmos coisas sobre nós mesmos que não gostaríamos. Mas, por mais que haja dor envolvida, Persona 5 nos lembra que mesmo que esse caminho da rebeldia não seja simples, existem outros com os quais podemos contar se nos abrirmos e permitirmos que eles se abram o suficiente para que admitam as mesmas fraquezas e incertezas, independente de qual idade ou background eles tenham.

Não são temas rasos ou com respostas certas. Ainda assim, Persona 5 consegue abordá-los no geral com elegância e o cuidado necessário. Ele é um jogo importante.