As pessoas estão usando Life is Strange para descrever 13 Reasons Why, e isso é ótimo
Aviso: Este artigo aborda certos trechos da trama de Life is Strange.
“É tipo Life is Strange”. Essa é a forma como me apresentaram 13 Reasons Why, nova série do Netflix. E é provavelmente a primeira vez que noto que um jogo está sendo usado para descrever uma obra televisiva.
As razões para isso são claras: ambos os títulos exploram o lado sombrio do universo adolescente, focando-se especificamente na hostilidade do ambiente escolar. Bullying, machismo, depressão e suicídio são alguns dos temas centrais tanto do jogo (que vale dizer, possui estrutura seriada) quanto da série de TV, e não por coincidência, males do mundo moderno amplamente debatidos na sociedade atual.
Ainda não assisti à 13 Reasons Why (American Crime Story ocupou meu tempo dedicado à TV nas últimas semanas) e nem é minha intenção comparar diretamente ambas as obras. O que quero destacar aqui é o que isso significa para os videogames e para Life is Strange, que eu classifiquei como o melhor jogo de 2015 em minha lista pessoal no Overloadr.
Life is Strange✔@LifeIsStrange
.@13ReasonsWhy so our fans are saying we've got stuff in common... and we love a bit of nostalgia too!
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Geralmente é mais fácil usarmos filmes, séries ou livros conhecidos para explicar a alguém quais são os temas abordados em um jogo, especialmente se a pessoa a qual estamos fazendo a apresentação não tem tanta bagagem de videogames. Histórias sobre distopias como BioShock tendem a remeter ao romance distópico 1984. Óperas espaciais como Mass Effect, a Star Trek ou Star Wars. O espírito de aventura e exploração imbuído em Tomb Raider e Uncharted, à Indiana Jones.
É por isso que me surpreendi ao ver, mais de uma vez, Life is Strange sendo usado para descrever 13 Reasons Why, dado que o que vemos normalmente é o caminho inverso. Isso me faz pensar em duas coisas: que videogames estão ganhando seu espaço e relevância enquanto formas de narrativa em meio às artes tradicionais e que Life is Strange continua sendo um dos jogos mais importantes dos últimos anos.
No jogo do estúdio francês Dontnod somos Max, uma jovem fascinada por câmeras fotográficas analógicas que retorna de Seattle para sua cidade natal, em Oregon, para cursar fotografia em uma prestigiada universidade. Sua volta evoca sentimentos nostálgicos, trazendo à tona memórias da infância que ela deixou para trás, e uma sensação de isolamento, resultado da falta de sintonia com os colegas de sala e a perda de contato com sua melhor amiga de infância, Chloe.
Eventualmente, Max testemunha uma briga no banheiro da universidade, que termina com uma garota de cabelos azuis sendo baleada, fato que, por alguma razão, ela consegue reverter. A partir de então, Max percebe que é capaz de voltar no tempo em alguns instantes, o que acaba se tornando a mecânica central de Life is Strange e seu grande dilema: e se pudéssemos voltar no tempo e refazer nossas decisões? E se pudéssemos alterar o passado para reverter o futuro?
Apesar dos tons sobrenaturais, que remetem diretamente ao filme Efeito Borboleta, Life is Strange dedica atenção suficiente aos mesmos temas abordados em 13 Reasons Why, sendo sua personagem Kate Marsh a que mais se aproxima da história trágica de Hannah Baker.
Na série, antes de se suicidar (e isso é a premissa de 13 Reasons Why, e não um spoiler, ok?), Hannah deixa fitas K7 a treze pessoas, nas quais ela explica como cada uma delas contribuiu para que ela decidisse tirar sua própria vida. Os episódios exploram temas como difamação, revenge porn e estupro, todos diretamente concernentes à morte de Hannah. Embora Life is Strange tenha um tom menos depressivo, temas similares são abordados, de forma não muito diferente.
Kate é uma garota cristã reservada, que é hostilizada pelos estudantes de sua universidade por suas visões conservadoras sobre sexo e religião. Após ser inadvertidamente drogada em uma festa, ela é filmada beijando diversos rapazes e agindo de forma sexualmente deliberada. Ao descobrir a existência do vídeo, e que todos na universidade estão o compartilhando, ela entra em um profundo estado de depressão.
Embora a história do jogo não seja centrada em Kate, você, no papel de Max, pode se aproximar da personagem e ajudá-la. Na verdade, dar atenção ao problema de Kate e prestar apoio à garota é a única forma de salvá-la do suicídio. Em meu jogo, talvez por eu mesmo discordar das visões conservadoras de Kate, acabei não me aproximando tanto quanto podia e nem confortando-a tanto quanto era preciso. Isso culminou em uma das sequências mais dolorosas que já pude presenciar nos videogames.
A notícia de que Kate estava prestes a pular do telhado se espalhou rapidamente pelo campus. Conforme me aproximo de uma multidão que se formava na frente do prédio dos dormitórios, para meu espanto, ela se lança contra o chão, na frente de todos. Neste momento, você é capaz de reverter o tempo apenas o suficiente para evitar a queda, mas não a decisão de Kate. Max então, fazendo uso de toda sua força de vontade, descobre que consegue congelar a realidade por alguns instantes com Kate ainda no telhado, dando a ela tempo suficiente para subir até lá e encontrá-la. E neste momento, o primeiro ponto do jogo em que é impossível usar seus poderes novamente, você precisa convencer Kate a desistir da ideia de se matar. Ali eu senti que a vida de Kate estava em minhas mãos, e que qualquer resposta errada iria resultar na sua morte.
As coisas que eu fiz e deixei de fazer por Kate foram trazidas à tona no diálogo subsequente. Pensava profundamente nas implicações de cada uma das palavra das opções de resposta que o jogo me oferecia — pense nos seus pais, seja forte, sou sua amiga — mas algo fez com que a garota recuasse. Kate se jogou. Durante os próximos minutos, eu chorei, me sentindo angustiado e impotente por não ter salvo sua vida. O jogo me fez sentir culpa.
A morte de Kate fecha o segundo episódio, e o fato tem implicações nos episódios seguintes, o que fez com que o sentimento me acompanhasse até o fim da trama — que (surpresa!) é uma das mais trágicas da história dos videogames, ainda que esperançosa. Nenhum jogo fez tanto YouTuber chorar compulsivamente em vídeo quanto este.
Choques e tragédia à parte, Life is Strange faz um trabalho incrível de representação dos problemas que a vida estudantil acarreta nos indivíduos. Jogá-lo é viver muito da rotina de um adolescente e todos os dramas que estão inevitavelmente atrelados a ela, especialmente na era do cyberbulling. Mas mais do que testemunhar esses problemas, Life is Strange nos dá a chance de agir.
Há momentos em que podemos intervir e impedir um ato de violência física ou psicológica contra os personagens. A maneira como ele explora a agência do jogador para permitir que ele tome atitudes a favor das vítimas de bullying e assédio é uma das coisas que tornam sua experiência tão valiosa. Mesmo que Life is Strange, como um todo, fale muito sobre fragilidade e impotência, esses pequenos momentos são empoderadores. Dependendo de como você o joga, a própria Kate pode ser salva, o que faz com que seu suicídio seja completamente evitado.
Essa talvez seja a maior diferença entre 13 Reasons Why e Life is Strange. Enquanto um, em sua forma passiva, nos permite apenas testemunhar uma história sinistra de injustiças e abusos, o outro, em sua forma ativa, nos permite agir contra essas mesmas injustiças, ainda que dentro de certas restrições. E talvez por isso (e por coisas como sua campanha anti-bullying) Life is Strange tenha causado um impacto tão positivo, o que fica evidente dentro de sua própria comunidade. Não faltam ilustrações criadas por fãs que retratam Kate superando sua depressão e recebendo afeto de Max.
E se as pessoas estão citando Life is Strange para falar de algo novo que aborda assédio e bullying em ambiente escolar, é porque ele é lembrado como uma obra relevante, que foi capaz de adicionar à discussão algo importante sobre essas questões, especialmente em uma mídia tão ou mais consumida por jovens do que a TV. E, tratando-se de um jogo, isso é uma conquista e tanto, dado como videogames normalmente costumam fugir da realidade ao invés de representá-la.