Da cozinha de um restaurante real a Overcooked: uma conversa com Phil Duncan

A maior ironia de Overcooked é que ele é melhor aproveitado quando jogado em quatro pessoas, muito embora ele tenha sido desenvolvido por apenas duas. Phil Duncan e Oli Devine deixaram a Frontier Developments para fundar a Ghost Town Games, localizado em Cambridge, no Reino Unido. Overcooked, seu jogo de estreia, rendeu à dupla um BAFTA e, mais recentemente, o prêmio de melhor jogo do BIG Festival 2017, realizado em São Paulo no fim de junho.

Durante o evento, tivemos (eu, Henrique Sampaio, e Heitor de Paola) a oportunidade de trocar algumas ideias com Phil sobre o sucesso inesperado de Overcooked, as dinâmicas de jogos multiplayer cooperativos, os sentimentos que a experiência de seu jogo desperta entre as pessoas, o Nintendo Switch e a importância do playtest durante o desenvolvimento de games. E Jonathan Blow.

Phil, que já trabalhou na cozinha de um restaurante, faz comparações entre seu jogo e a realidade. “Você podia ver como aquele sonho que tínhamos de fazer jogos que exigem cooperação e coordenação de suas ações combinava perfeitamente com o que víamos na cozinha, porque é como um jogo de alguma forma”, conta. “Você tem um limite de tempo. Alguém fez o pedido. Eles vão ficar putos e sair do restaurante se não receberem sua comida dentro de meia hora ou menos. E você tem todas essas pessoas que estão contando umas com as outras. Alguém tem que lavar a louça para que haja pratos limpos para que o chef possa servir. E você está contando com os garçons que gerenciam as mesas. Então, sim, tenho certeza que algo disso era um gérmen na minha cabeça para fazer o jogo.”

Leia a entrevista completa:

Henrique: Está gostando de São Paulo?

Phil: Sim, estou tendo ótimas experiências até agora. Saímos para comer aquele… como eles chamam? Aquele bife em um… churra…?

Heitor: Churrasco?

Phil: Churrasco, isso. Sabia que iria errar se eu tentasse pronunciar [risos].

Heitor: Mas eu reconheci o que você estava tentando falar, então não foi ruim.

Henrique: Você foi ao bar que o pessoal visitou ontem?

Phil: Ah, o Skye Bar, certo? Foi ótimo!

Henrique: Uma grande vista né? É uma cidade enorme.

Phil: Sim. Eu não pude acreditar quando estávamos prestes a pousar e, vendo lá de cima, a cidade ia passando e passando e passando, com tantos prédios. Qual o tamanho da população? 12 milhões?

Henrique: É, somos quase um país.

Phil: Eu ouvi que a população é maior que a da Austrália? Alguém me disse ontem. Não destaquem essa frase [risos].

Heitor: Sério? Eu realmente não sei. Bem, preparei algumas perguntas para você. Uma das coisas que senti com Overcooked é que ele foi um jogo que explodiu do dia para a noite. As pessoas passaram a falar muito sobre ele. Já falavam em eventos, o Giant Bomb jogou uma demo antes do lançamento, mas acho que assim que ele saiu, o jogo pegou muito rapidamente. Me lembro de ter ouvido as pessoas falarem que durante a Quake Con houve campeonatos de Overcooked.

Phil: Sério? Não sabia disso. Que incrível!

Heitor: Acho que os caras do Kinda Funny falaram sobre isso, que foi um dos jogos mais curiosos da Quake Con. Como foi perceber tão subitamente que vocês tinham algo muito grande em suas mãos? Isso mudou de alguma forma o jeito que vocês trabalharam adiante com o jogo? Algum ajuste para aproveitar todo o ânimo em torno do jogo?

Phil: Respondendo a primeira pergunta, sobre como foi. Bem, foi muito surreal. Tipo, nós somos dois caras que fizemos esse jogo nas salas de nossas casas para ser jogado por todo mundo. Ele já era bem divertido para nós mesmos. Então quando saiu vimos alguns youtubers jogando, algumas análises e ficamos ‘oh, isso é fantástico’. E quanto mais as pessoas jogavam, mais surreal ficava. E, na verdade, não acho que ocorreu a nós quantas pessoas estavam jogando até poucos meses após o lançamento. Foi crescendo gradativamente, com histórias como essa da Quake Con. Tipo, aquele youtuber que tem milhares de seguidores está jogando, desenvolvedores que gostamos muito estão jogando em seus escritórios. Parece que ainda não caiu a ficha pra nós, mas é… é bem surreal.

E quanto se isso mudou algo para nós, eu acho que gerou mais pressão, pois você quer garantir que as pessoas que estão jogando estão curtindo, e que elas não foram esquecidas, porque, obviamente, se o jogo saísse e ninguém tivesse ligado, então não teríamos lançado nenhum DLC, por exemplo.

O impulso que ele ganhou foi importante para nós para criar novos conteúdos e para fazer os pacotes de DLC que fizemos após [o lançamento]. E agora estamos trabalhando na versão para o Switch e isso se tornou mais importante novamente, pois há todo esse novo público que realmente quer jogá-lo. Então isso de repente foi priorizado.

Heitor: Isso talvez seja um pouco mais subjetivo: o que há na jogabilidade cooperativa de Overcooked que fez com que tantas pessoas se engajassem? Porque, bem, não sei se temos muitos jogos cooperativos que despertam tanto vínculo e ao mesmo tempo ódio.

Phil: Nossa abordagem é um pouco diferente de outros jogos cooperativos. Então uma das coisas que era importante para nós era essa noção de que o que vai determinar se você foi bem sucedido ou não é como você atua em equipe. Quando você joga um dungeon crawler ou algum outro em que você pode jogar tanto single quanto multiplayer, há esse elemento de competição que é quem está perseguindo primeiro o próximo inimigo ou está atrás do loot etc. Com Overcooked é muito mais em como você funciona como uma equipe. Você não pode ser bom em Overcooked sozinho. Você precisa depender das outras pessoas. Então eu acho que isso seja um pouco único. Não acho que haja muitos jogos que possuem isso.

Heitor: Dentro da cooperação de Overcooked há também algo levemente antagonístico em suas ações, em como você tromba com outros jogadores, por exemplo. E você tem uma dose saudável de raiva quando alguém, por exemplo, joga algo que ainda não estava pronto no chão ou servindo um prato que não estava finalizado. Você acha que esse antagonismo é algo inato ao jogo. E se sim, você acha que esse tipo de competitividade também é um ingrediente importante dentro dos jogos cooperativos?

Phil: Essa é difícil. Acho que depende de quem está jogando. Às vezes vocês arranja pessoas para jogar e eles estão completamente sincronizados e nunca gritam ou discutem por que eles estão super relaxados.

Heitor: Eu não conheço essas pessoas.

Phil: [rindo] Nunca viu isso? Eu já vi em convenções antes. Eu acho que é inerente à cooperação em geral. Contar com outra pessoa para te ajudar a vencer é difícil porque, sabe, humanos possuem mais facilidade quando estão em controle de tudo e, se algo dá errado, eles sabem que é sua própria culpa. É quando a culpa recai sobre os ombros de outros que você fica um pouco mais… é de onde a raiva vem. Eu acho que é a sensação de falta de controle. Eu ouvi alguém dizer que estresse era percebido como falta de controle. E eu acho que é meio que isso que você tem em Overcooked, esse sentimento de “eu tô fazendo a minha parte”.

Heitor: Isso me lembra, não sei quem escreveu isso, mas como o Miyamoto costumava implementar alguma forma de ferrar com seus amigos embora você tivesse que cooperar com eles. Como em New Super Mario Bros. do Wii, com quatro jogadores, em que muitas das coisas que você fazia era ferrar com seus amigos.

Phil: Ah, sim, pulando na cabeça uns dos outros…

Heitor: E isso me lembra um pouco de como Overcooked funciona: vamos todos trabalhar para fazer essa receita, mas então você tromba com alguém e o joga na água.

Você acha que as pessoas se sentiram atraídas por Overcooked não apenas por ser um jogo bom, mas muito por conta de seus temas leves também? Sabe, as pessoas cozinham em suas casas. E esse jogo é colorido, não possui temas sombrios. Você acha que isso é uma razão para as pessoas terem se aproximado?

Phil: Eu acho que sim. É muito acessível a todo mundo. Cozinhar é algo universal. Todo mundo já cozinhou em algum ponto da vida. Para nós foi bom com a questão do tutorial, porque a maioria das pessoas sabe como um hambúrguer ou uma pizza são feitos. Eles chegam no jogo com um conhecimento que não precisamos ensiná-los. E eu acho que isso é muito útil. E também o fato de você ter controles simples. Com um direcional e dois botões você já está dentro do jogo. Eu já vi pessoas que não costumam jogar videogames pegar o controle e entrar no jogo muito mais rapidamente do que se estivessem jogando um jogo de tiro em primeira pessoa ou algo e que você usa os dois direcionais.

Heitor: Aliás, me corrija se eu estiver errado, mas eu li que você e seu parceiro [Oli DeVine] trabalharam em uma cozinha antes de desenvolverem Overcooked.

Phil: Sim, sim. Depois da faculdade eu trabalhei em uma rede de restaurantes. E você podia ver como aquele sonho que tínhamos de fazer jogos que exigem cooperação e coordenação de suas ações combinava perfeitamente com o que víamos na cozinha porque é como um jogo de alguma forma. Você tem um limite de tempo. Alguém fez o pedido. Eles vão ficar putos e sair do restaurante se não receberem sua comida dentro de meia hora ou menos. E você tem todas essas pessoas que estão contando umas com as outras. Alguém tem que lavar a louça para que haja pratos limpos para que o chef possa servir. E você está contando com os garçons que gerenciam as mesas. Então, sim, tenho certeza que algo disso era um gérmen na minha cabeça para fazer o jogo.

Heitor: E a definição de stress que você deu se encaixa bem em como uma cozinha funciona. Todos os reality shows que vemos é sobre pessoas gritando uma com as outras por eles não terem feito a parte deles.

Phil: Pois é. Eu nunca conheci um chef pacífico [risos].

Henrique: Isso é uma abordagem do seu trabalho, olhar para coisas convencionais, coisas que fazemos em nossa vida rotineira e tentar transformar isso em videogames? Procurar os sistemas que existem por trás das coisas que fazemos diariamente?

Phil: Eu acho que é uma grande inspiração. Não é de onde sempre nossas ideias vêm, mas é algo que sempre nos pegamos fazendo. Sempre olhamos para pequenas e estranhas interações que as pessoas fazem na vida real e falamos “oh, parece que podemos gamificar isso”.

Heitor: Quero fazer uma pergunta sobre os personagens. Foi uma escolha consciente incluir personagens diversificados, como um guaxinim numa cadeira de rodas? Foi uma coisa mais ‘olha, isso é diferente e fofinho’ ou você tem uma intenção de representar um público mais abrangente?

Phil: Sim, foi importante para nós ter um grupo de personagens diversificados. Quando levamos o jogo para eventos nós vemos pessoas de todo o mundo jogando. Então queríamos que todos que estivessem jogando se sentissem representados de alguma forma. É impossível para nós representar tudo, mas foi legal ter um personagem de cadeira de rodas porque para nós foi muito fácil fazer. Os controles deles são exatamente o mesmo. Não foi como num jogo AAA, que se você adiciona um personagem precisa pensar nas animações. Tínhamos a oportunidade então, porque não?

Heitor: Jogos competitivos locais parecem ter tido uma forte ressurgência há alguns anos, mas jogos cooperativos parecem existir em menor quantidade. Por que que acha que isso aconteceu? Na sua experiência, você acha que é mais difícil criar um jogo cooperativo em vez de um competitivo?

Phil: Inicialmente sim. Eu acho que com o multiplayer competitivo você tem a vantagem de dar a cada jogador o mesmo conjunto de regras. Um jogador pode atirar e se todos puderem fazer isso, então você instantaneamente tem uma espécie de loop de gameplay. É mais difícil com jogos cooperativos porque eles não estão lutando uns contra os outros. Você está lutando contra outras coisas. Em Overcooked os jogadores estão lutando contra o tempo. Então inicialmente é difícil de alçar voo com sua ideia. É até mais fácil e rápido fazer um protótipo de um jogo cooperativo funcionar. Sei lá. É até difícil articular.

Heitor: Eu acho que li que enquanto vocês estavam criando Overcooked eram apenas você e seu parceiro e vocês tinham que usar o tempo disponível em eventos para ver como as pessoas responderiam se jogassem quatro ao mesmo tempo. Isso era uma limitação que vocês tinham: serem apenas dois fazendo um jogo para quatro pessoas.

Phil: É, eu realmente não sabia o que a gente tava pensando [risos]. Em convenções, com amigos, família, sempre tentávamos juntar quatro pessoas em uma sala e colocá-los para jogar. Isso foi superimportante, e não acho que é só porque trata-se de um jogo para quatro jogadores. Quando você joga o seu próprio jogo, você perde a noção de como as pessoas o abordam quando elas o testam pela primeira vez. Então, quanto mais tempo você dedica colocando pessoas para jogá-lo, mais feedback você coleta.

Heitor: E vocês tiveram ideias que consideraram muito difíceis para que os jogadores pudessem superar e vocês tiveram que eliminar?

Phil: Sim, várias fases que nunca chegaram a aparecer no jogo final. Bem, algumas foram para o DLC.

Heitor: Há algo que venha a mente que você gostaria de ter feito funcionar?

Phil: Tinha umas que não eram exatamente difíceis, mas que só funcionavam com três ou quatro jogadores. Então ter fases criadas especificamente para um determinado número de jogadores era limitante. Por exemplo, tinha uma fase em que você tinha quatro quadrantes diferentes. Uma pessoa teria acesso aos ingredientes e tinha que passá-los de um quadrante a outro para então cortá-los e mandá-los de volta nessa espécie de loop. É ótimo em quatro jogadores, mas em dois jogadores é uma fase bem simples, apenas passando as coisas um para o outro. Tínhamos algumas assim, e tivemos que dizer ‘é, isso não funciona’ e tirá-las. Foi um pouco decepcionante para mim.

Heitor: Então, digamos que eu estava stalkeando seu feed do Twitter. Notei que você trouxe o seu Switch para o Brasil. Você o estava jogando no aeroporto. Você acha que a natureza do Switch de ‘jogue em qualquer lugar’ parece estar pegando entre as pessoas? Você já teve ideias de como jogos cooperativos poderiam funcionar neste cenário fora de casa?

Phil: Hm… acho que sim. Definitivamente muda sua abordagem quando você pensa que as pessoas poderiam estar jogando em um café ou no ônibus. A principal coisa com o Switch é que o console vem com dois Joy-Cons, então você sabe que todo mundo terá acesso a dois controles.

Eu acho que isso é bem legal do ponto de vista do desenvolvimento porque você não precisa se preocupar tanto com o acesso das pessoas ao hardware. Para Overcooked é perfeito porque sabemos que se você tem um Switch você poderá baixar Overcooked e jogar com um amigo. Se alguém que você conhece também tem o Switch, pronto, você já pode jogar em quatro pessoas.

Não é algo que eu considerei, bem como outras maneiras de tirar proveito do Switch. Mas é algo que certamente iremos pensar no futuro.

Henrique: Como foi trabalhar com a Team 17 como publisher? Eles te deram liberdade criativa ou fizeram sugestões?

Heitor: Sugestões como “e se todos os personagens fossem minhocas?”

[risos]

Phil: Em defesa a eles, nunca sugeriram isso. Nós decidimos fechar com eles bem tarde no desenvolvimento então quando eles entraram, o jogo já estava praticamente pronto. Foi mais tarde até do que qualquer um de nós queria por que, idealmente, você quer ter mais tempo para preparar divulgação e marketing e essas coisas. Então não houve sequer tempo para qualquer mudança. Uma coisa que eles ajudaram bastante foi com o processo de controle de qualidade, e foi super-valioso porque, obviamente, nós estávamos de cabeça baixa consertando bugs e eles tinham alguém jogando constantemente e nos apontando qualquer parte que pudesse dar algum problema de certificação. Então eles foram muito úteis.

Heitor: E depois do sucesso de Overcooked, vocês estão mirando fazer novos jogos cooperativos? Ou veremos jogos para um jogador da Ghost Town Games?

Phil: Estamos fazendo todo tipo de protótipo criativo. No momento estamos obviamente focados na conversão de Overcooked para Switch, mas nos tempos livres nós trabalhamos em diferentes protótipos, alguns single player, alguns multiplayer local. Eu diria que com multiplayer local há muitas oportunidades diferentes que poderíamos explorar. Esse mercado não é saturado e temos muita experiência com Overcooked que eu gostaria de levar adiante. Vamos continuar procurando, mas vamos deixar isso aberto até acharmos o jogo certo.

Heitor: E eu imagino que o sucesso de Overcooked deu a vocês a chance de vocês tomarem um tempo confortável para o próximo projeto.

Phil: É, definitivamente não estamos apressados como estaríamos se a situação fosse outra. E nós queremos manter o ritmo e não cair em armadilhas como levar seis ou oito anos para fazer nosso próximo jogo.

Heitor: Você não quer ser o Jonathan Blow, é isso que você está dizendo.

Phil: Eu amaria ser o Jonathan Blow [risos]. Acho que queremos manter esse impulso. Ter restrições de tempo nos ajuda. No final de Overcooked eu adoraria ter seis meses adicionais apenas para polir e mudar algumas coisinhas. Mas é bom terminar o jogo e sair de lá.