Em um único episódio, Chloe já é mais interessante que Max em uma temporada inteira de Life is Strange
Este texto aborda, de forma vaga, partes das tramas de Life is Strange e Life is Strange: Before the Storm.
Eu fui uma das pessoas que estranhou o anúncio de Life is Strange: Before the Storm. Sem a protagonista do original, Max, que era capaz de manipular o tempo, e focada em uma personagem cujo destino já está selado (ao menos quando consideramos um dos finais de Life is Strange), me perguntei o que seria explorado nessa nova temporada, que antecede os eventos que já conhecemos. Sem um “poder” como o de Max, o que poderia haver em Before the Storm que o tornasse tão bom quanto a primeira temporada? A resposta é simples: humanos.
A trama do original foi escrita para levar em consideração os poderes da Max, mas o cenário que ele pinta já é interessante por si só. Arcadia Bay é um microcosmo repleto de histórias de abandono, separação, corrupção e abuso, mas também de amizades, conquistas, perdão e compaixão. São esses elementos, ainda que sobrepostos ao conceito de viagem no tempo, que tornam Life is Strange tão bom, e não suas mecânicas ou mirabolâncias temporais. Seu universo é rico em personagens humanos e conflitos não muito distantes daqueles que enfrentamos em nossas próprias vidas. E, depois de jogar o primeiro episódio de Before the Storm, é evidente que a Deck Nine, equipe por trás da nova temporada, sacou isso.
Embora Before the Storm tenha uma espécie de mecânica própria para substituir a manipulação do tempo da Max e representar a atitude desobediente da Chloe, ela é só mais uma forma de dialogar com personagens — no caso, um bate-boca. E tudo bem: em um jogo sobre relacionamentos humanos, é um ótimo sinal que as diferentes formas de interação entre pessoas sejam inteiramente baseadas em diálogos.
Há uma outra qualidade aqui: os diálogos são estruturados de acordo com as dinâmicas sociais de cada contexto. Num bate-boca, é preciso escolher a melhor resposta para humilhar ou diminuir o interlocutor com base nas palavras usadas por ele, e ainda sob a pressão do tempo. Em uma partida de RPG de mesa, é preciso interpretar as alternativas com base no contexto de fantasia, mas mantendo um certo grau de empatia para com seus colegas, visto que suas decisões podem afetá-los e impactá-los emocionalmente.
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Em outra situação, quando ainda estão se conhecendo, Rachel desafia Chloe a dizer duas verdades e uma mentira. Cabe ao jogador interpretar, a partir do que ele entende que rola entre as duas (e da clara insegurança de Chloe) se ela deve seguir à risca as regras definidas por Rachel ou quebrá-la, seja só com mentiras, só com verdades, mais mentiras que verdades ou vice-versa. A complexidade mecânica dos diálogos de Before the Storm acompanha as nuances da interação social humana: as alternativas, muitas vezes divididas em diferentes camadas de escolhas, refletem as possibilidades de intenções, ênfases e expressão de Chloe, nunca de forma óbvia ou binária.
Before the Storm dedica tempo suficiente para construir seus personagens para que cada uma dessas decisões venham carregadas de significados ao jogador. Em vez de resumir Chloe a uma típica adolescente revoltada (que é o que tínhamos no primeiro jogo), ele ancora seus traços rebeldes nas dores das perdas: do pai, em um traumático acidente de carro, e da amiga de infância, Max, que a “abandonou” ao se mudar para Seattle com a família. A presença constante do padrasto em sua casa, uma figura de valores totalmente opostos aos dela, acentua suas atitudes antissociais e seus conflitos com a mãe.
O contato com suas feridas mais profundas nos faz entender a casca grossa que Chloe construiu ao seu redor, como um sistema de defesa. Desde nosso primeiro contato com Life is Strange, ela aparenta ser durona e capaz de lidar com seus problemas (muito embora isso resulte em sua morte, que é revertida por Max logo no primeiro episódio da série), mas a real é que, ao olhar de perto, vemos o oposto: uma garota insegura e solitária. E, talvez por nos colocar para tomar decisões justamente no momento em que ela conhece alguém capaz de curar essas feridas, cada pequena escolha parece ter um peso enorme.
É algo poderoso o que Before the Storm faz: nos permitir olhar o mundo da perspectiva de alguém que a gente achava que já conhecia para, então, entender suas atitudes, seus pensamentos. Talvez por isso mesmo, em apenas um episódio, a Chloe tenha se tornado imensamente mais interessante que a Max em uma temporada inteira. Além de sua fragilidade mais evidente, seu humor ácido e autodepreciativo são mais honestos para mim.
Before the Storm ainda irá se desenrolar em mais dois episódios, o próximo previsto para o fim de outubro ou começo de novembro. Sua trama mais “pé no chão”, calcada em relações familiares, o aproxima tematicamente de Gone Home, o que é um ótimo sinal para essa temporada.
Life is Strange: Before the Storm está disponível para PC, PlayStation 4 e Xbox One. No Steam, o preço da temporada completa é R$ 44,99.