Por que armas ainda são a norma em videogames?
Para entender por que armas parecem indissociáveis de videogames, é preciso olhar para o passado e traçar as conexões entre os jogos, a guerra e o militarismo. Nesta série de quatro episódios, buscamos na história respostas para entender porque mecânicas de tiro e combate são tão prevalentes em videogames. Passaremos pelos primórdios da humanidade, pela criação do wargaming, pela Guerra Fria, pelo nascimento dos videogames até chegarmos aos dias de hoje.
No episódio I: A relação histórica entre jogos e militarismo.
O conteúdo está disponível na forma de vídeo e texto.
Oque videogames comunicam? Qual a imagem que eles transmitem para quem os vê de fora? A gente pode chegar a diferentes respostas dependendo de como olhamos para eles, mas se nos focarmos no que há de mais popular nesse meio nos últimos 10 anos, fica bem claro que, em grande parte, jogos possuem uma linguagem bastante bélica e militar.
Call of Duty, por exemplo, é a série de jogos mais vendida nos consoles desde 2009. As únicas exceções são GTA V e Red Dead Redemption 2, que também são bastante focados no uso de armas de fogo. De todos os jogos anunciados na E3 entre 2015 e 2019, apenas 20% são jogos não violentos e sem a representação de armas, incluindo aí jogos de esporte, corrida e cartas.
Apenas com base nesses dados, não é difícil notar que armas parecem indissociáveis de jogos. Embora títulos sem foco em tiro ou combate existam aos montes, em diferentes plataformas e de diferentes gêneros, nem sempre eles rompem a bolha do nicho e atingem o grande público, especialmente se eliminarmos os jogos mobile da equação. A indústria e a comunidade de games ainda dão mais valor aos títulos que têm o conflito e o combate como pilares centrais de gameplay, então não deveria ser uma surpresa constatar que a linguagem em torno dos videogames é tão bélica e militar, e nem que armas são tão fetichizadas nesse meio.
Mas isso não é apenas uma coincidência. Há muitas razões para que game designers tenham dificuldade em pensar em jogos com protagonistas que não empunham armas. Em 2018 eu publiquei aqui no Overloadr um vídeo chamado De onde vem a violência nos videogames?, no qual eu aponto que a necessidade de conflito em jogos pode ser uma das causas para sua aparente natureza violenta. Desta vez, eu quero olhar para um outro aspecto histórico que também pode nos ajudar a entender por que armas ainda são a norma em videogames, e não a exceção.
Herança genética
Jogos tradicionais podem ser descritos como uma disputa por algo entre dois ou mais lados, com condições que determinam a vitória e a derrota. Não coincidentemente, guerras também podem ser descritas dessa mesma forma.
Antes de existir o jogo, há a brincadeira, o espírito lúdico. Brincar é um instinto presente não apenas em humanos, mas em grande parte dos animais, especialmente os mamíferos, e é uma forma natural das espécies praticarem habilidades essenciais à sua sobrevivência. Num mundo selvagem e pré-histórico, onde tudo poderia representar uma ameaça à vida, inclusive humanos de outras culturas, etnias e crenças, o espírito lúdico rapidamente se manifestou na forma de jogos que nos treinam a mirar, procurar, projetar poder, reagir, avaliar etc.
Ao longo da história nós usamos o conflito artificial dos jogos para nos preparar física e mentalmente para situações de conflito real, mesmo que essa não seja a nossa intenção quando iniciamos um jogo.
No mundo moderno, nossa sobrevivência certamente depende menos de força e agilidade, e nossa sociedade, ao menos em teoria, promove a igualdade entre os indivíduos, independentemente das nossas diferenças. A nossa herança genética, contudo, faz com que nosso cérebro continue nos recompensando em desenvolver essas habilidades, mesmo que virtualmente.
E se a guerra pode ser vista como sobrevivência e subsistência em larga escala, não mais de um ponto de vista individual mas sim coletivo, é simples entender por que jogos estão historicamente atrelados a ela e, consequentemente, ao militarismo.
A ludificação da guerra
Alguns dos jogos mais antigos que se tem registro, como o chinês Go e o indiano Chaturanga, o avô do Xadrez, são interpretados como batalhas territoriais entre dois exércitos e fortemente dotados de simbolismo militar, mesmo que eles sejam puramente abstratos. No caso dos esportes, quando não eram usados como forma de treinamento militar, normalmente giravam em torno de habilidades de sobrevivência (e, na verdade, ainda são em grande medida sobre isso), incluindo as lutas. Não por acaso, muitos desses esportes de combate são chamados de artes marciais -- relativo à Marte, o deus romano da Guerra.
Alguns esportes, inclusive, se desenvolvem a partir de táticas militares, como a justa, uma disputa perigosíssima entre cavaleiros equipados com lanças e armaduras -- basicamente, unidades pesadas de guerra da era medieval.
Uma das maiores influências para os videogames e que nos ajuda a entender como ele surgiu do militarismo seria inventada no fim do século XVII na Prússia.
No episódio 2: a história do Kriegsspiel e como muitos do que a gente entende de videogame nasceu neste jogo militar com quase 250 anos de vida.