A resistência dos criadores de Árida, jogo sobre a vida no sertão baiano

O lançamento de Árida neste dia 15 de agosto, criado pelos baianos da Aoca Game Lab, não poderia ser mais simbólico para o momento em que vivemos. Em meio às constantes declarações xenofóbicas do presidente Bolsonaro ao povo nordestino e a sua recente afirmação de que não há fome no Brasil, o jogo nos insere na pele de uma garota que luta diariamente pela sua sobrevivência e de seu avô diante à seca e aos recursos escassos do sertão da Bahia no final do século XIX. Ele se torna politicamente ainda mais emblemático quando consideramos seu desenvolvimento em uma empresa incubada em uma universidade pública e com verba da Ancine — instituições que estão na mira do governo.

Ao longo dos dois anos de desenvolvimento de Árida, os próprios criadores tiveram que lidar com “piadinhas” em função da temática do jogo e dos aspectos culturais e regionais ligados a ele. “Coisas como: ‘o jogo é sobre manter o jogador acordado durante o gameplay’, possivelmente numa relação ao estereótipo do baiano e da preguiça”, me conta Filipe Pereira, historiador, professor da UNEB (Universidade do Estado da Bahia) e game designer de Árida. “Ou que ‘por conta do jogo os gringos vão achar que a gente vive na Idade Média’. Ou que ‘o objetivo do jogo é conseguir o Bolsa Família’”.

Da esquerda para a direita: Laiza Camurugy, Túlio Duarte, Bigod Silvia, Victor Cardozo, Filipe Pereira, Daniel Argôlo e Vinícius Santos.

Da esquerda para a direita: Laiza Camurugy, Túlio Duarte, Bigod Silvia, Victor Cardozo, Filipe Pereira, Daniel Argôlo e Vinícius Santos.

Em entrevista ao Overloadr, Filipe reforça que embora o foco de Árida seja o entretenimento, isso nunca foi um impeditivo para a equipe trabalhar com valores culturais e identitários, que refletissem suas própria raízes. “Internalizamos a mentalidade de que com esse jogo estamos tocando em outros pontos além do entretenimento. Até mesmo pelo fato de sermos da Bahia, um estado com características históricas e culturais únicas, tendo mais da metade do time formado por pretos, um fato raro no desenvolvimento de games no mundo todo.”

Dito isto, cada característica estética, mecânica e narrativa em Árida foi feita com consciência pelos seus criadores, a começar pela sua protagonista, Cícera, uma garota negra, nordestina e pobre. Considerando o contexto histórico (do jogo e do momento em que ele foi lançado) e o universo conservador dos videogames, que raramente traz personagens com esses traços, Cícera é automaticamente um convite à questões de gênero, raça e classe.

“O jogo toca nesses pontos de forma tangencial, afinal, o jogador assume o controle dessa protagonista envolta nessas questões. Então, como produto cultural que ele é, ele tocará cada jogador de uma forma, de acordo com as visões e os valores que ele carrega.”

Felipe afirma, contudo, que a intenção da equipe não é buscar reconhecimento apenas pela temática ou representatividade. “Queremos antes de mais nada ser reconhecidos pela experiência que o Árida proporciona. As questões temáticas são uma consequência direta disso.”

Árida nasceu em um ambiente no qual videogames são pensados não apenas pelo seu potencial para divertir mas também para refletir aspectos da realidade. Desde 2002 o Centro de Pesquisas Comunidades Virtuais, situado na UNEB — primeira universidade pública estadual do Brasil a oferecer um curso superior de Jogos Digitais — desenvolve games educativos com temáticas históricas. É neste centro que fica incubado o estúdio independente Aoca Game Lab, que tem em sua equipe alunos e professores do curso, como o próprio Filipe.

 
 

Árida seria inicialmente focado em Canudos, mas conforme o projeto foi se concretizando, a equipe optou por abordar o sertão como universo a ser explorado em três diferentes episódios. “Identificamos o potencial estético, narrativo e cultural dessa ambientação mas mantivemos Canudos como um dos vetores da narrativa.”

A partir daí, o gênero de sobrevivência, de jogos como The Flame in the Flood, caiu como uma luva, permitindo que a equipe o explorasse como metáfora para o que acontece em alguns lugares do sertão, colocando o ecossistema como um obstáculo ao jogador. 

Além de estudar obras que retratam o povo sertanejo, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, os integrantes da equipe, de maioria nascida e criada em Salvador, fizeram uma visita ao sertão. 

De lá, trouxeram não apenas os registros fotográficos da vegetação, dos animais, das habitações e das texturas típicas do sertão mas também a sensibilidade do contato com sertanejos da zona rural. “Encontramos um idoso que era uma cópia fiel do Seu Tião, o avô de Cícera”, conta Filipe. “Criamos esse personagem antes da viagem e isso comprovou que, mesmo sem ter ido ao sertão até então, de alguma forma estávamos no caminho certo.”

“Novos elementos foram inseridos a partir dessa viagem, a exemplo da relevância dos bodes naquela cultura, a importância da fé para o sertanejo (independentemente de religião) e a construção visual dos relevos, do céu e dos horizontes.”

Pouco se sabe sobre o sertão lá fora. Consumimos conteúdos culturais de lugares diversos e acreditamos que podemos ter sim um caminho de mão dupla, desde que as coisas sejam feitas com um padrão de qualidade que nos permita essa valorização.

Sabendo da responsabilidade dessa representação para o projeto, que tem um escopo de lançamento internacional, Filipe reforça o cuidado da equipe em retratar este cenário nordestino sem cair em clichês. “Lidamos com o sertão com a maior cautela e o maior respeito possível, buscando entender quais são os limites dessa representatividade. Entendo que, assim como pesquisamos muitos outros conteúdos para produzir o nosso, futuramente poderemos ser alvo da pesquisa para outros interessados pelo tema.”

“Pouco se sabe sobre o sertão lá fora. Consumimos conteúdos culturais de lugares diversos e acreditamos que podemos ter sim um caminho de mão dupla, desde que as coisas sejam feitas com um padrão de qualidade que nos permita essa valorização.”

O papel da Ancine

O segundo episódio de Árida foi um dos projetos contemplados pelo primeiro edital de games da Ancine, que desde 2017 direciona uma parte do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) à produção nacional de jogos. A equipe também recebeu aporte da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, através de edital, para produção do primeiro episódio, Árida: O Despertar do Sertão, lançado nesta quinta (15).

O lançamento de hoje é o Árida: Backland's Awakening, que foi financiado pela SECULT - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, através do Edital Culturas Digitais FCBA 2014. O jogo que foi financiado pela Ancine é a continuação, Arida 2 (ainda sem título). Isso precisa estar bem explicito no texto, pois são produtos diferentes.

A prática é comum em programas mundo afora, como o edital do Instituto Norueguês de Cinema, do Ministério da Cultura da Noruega ou do Centro Nacional do Cinema e da Imagem Animada, do governo francês. Ambos financiam videogames que fogem de propostas puramente comerciais e que, portanto, poderiam não ter seus desenvolvimentos viabilizados. Dentre os projetos já financiados por esses órgãos estão jogos que exploram a cultura, a história, a identidade e a língua dos povos europeus, como My Child Lebensborn, sobre criar uma criança alemã em uma Polônia após a ocupação nazista e Draugen, que explora os mitos em torno dos fiordes noruegueses no começo do século XX. 

Sem os editais talvez estivéssemos produzindo algo mais adaptado às lógicas de mercado.

“Acho que sem o aporte de editais o Árida dificilmente existiria”, explica Filipe. “Para nós, como um time que está lançando o primeiro jogo, seria muito difícil, tanto técnica quanto mercadologicamente, se arriscar a fazer algo que busque diversidade de conteúdo como o Árida busca. Afinal um projeto é feito pela relação pessoas e tempo, e para se ter o tempo das pessoas muitas vezes é importante dar garantias materiais a elas. Sem os editais talvez estivéssemos produzindo algo mais adaptado às lógicas de mercado.”

Isso não significa que os editais não sejam passíveis de críticas, “como a importância de garantir a isonomia, o acompanhamento dos projetos e a priorização a projetos e empresas que estão em níveis iniciais mas que possuem condições de entregar o que foi proposto”, diz Felipe.

Araní, em desenvolvimento pelo estúdio pernambucano Diorama Digital

Araní, em desenvolvimento pelo estúdio pernambucano Diorama Digital

Contudo, para ele, um possível desmonte da Ancine não seria apenas um retrocesso, mas uma falha estratégica por, dentre outras coisas, não reconhecer os jogos digitais como um setor capaz de movimentar a economia ou como produtos culturais. “Quem acompanha de perto o setor percebe que há um antes e um depois desses editais”, diz. “Além do Árida, temos muitos casos de desenvolvedores que tiveram a mesma oportunidade de se qualificar profissionalmente através do edital, especialmente porque ele demanda um retorno comercial, o que muda completamente a forma como um time pensa, desenvolve e publica o seu produto.”

Outro projeto que também recebeu aporte da Ancine foi Araní, do estúdio pernambucano Diorama Digital, que explora mitos dos povos nativos brasileiros Tupi e Guarani, protagonizado por uma guerreira indígena. Se não fosse pelo edital da Ancine, talvez não veríamos jogos como estes, que exploram nossa própria história e cultura, sendo desenvolvidos no Brasil.

“Acreditamos profundamente que os jogos podem ser uma estratégia muito eficiente nesse processo de ressignificar e ‘modernizar’ os laços de identidade de um povo com a sua própria cultura”, opina Filipe, “especialmente entre as das gerações mais novas que tem a oportunidade material de assumir o jogar como uma atividade trivial nas suas rotinas.”

Acreditamos profundamente que os jogos podem ser uma estratégia muito eficiente nesse processo de ressignificar e ‘modernizar’ os laços de identidade de um povo com a sua própria cultura.

Mas quando consideramos o público amplamente conservador de videogames, vale a pena enfrentar tanta resistência, uma validada pelas declarações polêmicas do presidente? Filipe acredita que sim. “Já ouvimos que as nossas escolhas foram feitas para causar, para lacrar apenas, e aí por vezes rola o famoso ‘quem lacra não lucra’. Tudo isso nos fortalece e é para nós um sintoma de que o projeto está cumprindo seu papel, trazendo questões à tona em um ambiente onde normalmente elas não são discutidas.”

Filipe ressalta que as piadinhas e os ataques são uma exceção. “Tem bem mais gente dando suporte, se sentindo representado e enviando boas energias para que a gente siga nosso trabalho. E é nisso que a gente foca.”

“Não temos a ilusão de que o Árida vai sensibilizar muitas pessoas a pensar diferente, especialmente aquelas que já carregam valores que são opostos ao que acreditamos. Mas vivemos num país onde a falta de informação é massiva, e pouco se sabe sobre a sua própria história e sobre a história do seu país. Para essa parcela enxergamos um alto potencial de intervenção do Árida.”

“Para aqueles que já se sentem representados pelo projeto, que acreditam em valores semelhantes aos nossos e acreditam no nosso trabalho, esperamos que o jogo possa ser mais um vetor de identificação e de resistência junto a vários outros que já existem e ao que ainda virão.”

Árida: O Despertar do Sertão está disponível no Steam por R$ 9,99.