Estão usando uma tragédia para esconder um ciclo de abusos na indústria de games
Meia década atrás a indústria de games passava por um dos períodos mais turbulentos de sua história. Como lembrado nessa matéria do Nexo, o gamergate completou cinco anos em agosto de 2019. Disfarçado de um movimento por mais ética no jornalismo de jogos, ele promoveu uma campanha de ódio a mulheres e minorias que trabalhavam na indústria de games (de desenvolvedoras a jornalistas), num impulso de tentar impedir as transformações sociais pelas quais o meio vinha passando.
Seu discurso descentralizado e reacionário de intolerância chamou a atenção não apenas da mídia, que passou a denunciá-lo, expondo a todos o machismo tóxico que permeia a comunidade de games, mas também da extrema-direita, que alinhou as frustrações do grupo a movimentos de apoio a Donald Trump. A ascensão da alt-right, nome bonitinho para supremacia branca, que engloba ideais nacionalistas, racistas, misóginos e antissemitas, está diretamente associada ao gamergate e a forma como ele atuou, espalhando ódio em ambientes digitais.
No Brasil não foi muito diferente. O governo Bolsonaro acena a esse grupo de gamers tóxicos de maioria masculina, que compõem parte de sua base eleitoral e ajudou a elegê-lo, como aponta uma pesquisa publicada em outubro de 2018 pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Em um exemplo recente, enquanto o mundo inteiro se preocupava com as queimadas descontroladas na Amazônia, Bolsonaro anunciava a redução de IPI para videogames.
O gamergate normalizou o discurso de ódio contra mulheres e minorias nos espaços de videogames, mas os últimos dias foram particularmente mais movimentados entre esses grupos. Em uma nova ação desencadeada pelo que parecia o início de um movimento #MeToo da indústria de games, uma multidão raivosa tenta se aproveitar de uma tragédia para silenciar vítimas de abuso e inverter os lados de uma narrativa.
No dia 26 de agosto, Nathalie Lawhead alegou, por meio de um texto publicado em seu blog, divulgado pelo Twitter, ter sido alvo de violência sexual e psicológica pelo compositor Jeremy Soule (de The Elder Scrolls V: Skyrim), dando início a uma onda de denúncias de abusos cometidos em ambientes de trabalho ou decorrente de relações profissionais no meio de games. Uma dessas denúncias veio de Zoë Quinn — um dos principais alvos do gamergate no passado —, que acusou Alec Holowka, desenvolvedor que trabalhou em Aquaria, Towerfall e Night in the Woods, de tê-la abusado sexual e psicologicamente. O movimento chegou até o Brasil, com as denúncias da estudante de medicina Nathália Fernandes, jogadora de Pokémon Trading Card Game, que alega ter sido abusada sexualmente em um campeonato mundial do jogo, em Washington, nos EUA, por Cassiano, dono de uma loja de card games de São Caetano do Sul.
No dia 31, um sábado, uma reviravolta colocou esse movimento em xeque: a notícia da morte de Alec Holowka, anunciada pela sua irmã, Eileen Holowka. Em seu texto, Eileen afirmava que Alec — que falava abertamente sobre seus transtornos mentais em suas redes e tinha até um podcast sobre o assunto —, passou a vida lidando com problemas de humor e personalidade. “Não vou fingir que ele também não foi responsável por causar mal, mas no fundo ele era uma pessoa que queria apenas dar atenção e ser gentil como os outros”, escreveu. Em seguida, prevendo retaliações, ela afirmou: “No caso de ainda não estar óbvio o suficiente, Alec disse especificamente que desejava o melhor para Zoë e todos os outros, então não use nosso luto como desculpa para perseguir pessoas.” E foi então que começaram as perseguições.
Distorções convenientes
Na narrativa que vem sendo martelada desde a morte de Alec por youtubers, blogueiros e streamers alinhados aos discursos de ódio do gamergate, inclusive no Brasil, Zoë teria indiretamente assassinado Alec com acusações mentirosas e membros da comunidade indie e a equipe de desenvolvimento de Night in the Woods seriam cúmplices do “crime”, por terem se afastado do desenvolvedor. A trama muitas vezes vem acompanhada da hashtag #cancelcancelculture, com o argumento de que a cultura do cancelamento (curiosamente, aqui tratada como um fenômeno social exclusivamente de esquerda ou de “SJWs”) foi responsável pela morte de Alec.
Nessa versão deturpada da história, as acusações de abusos feitos por mulheres são tratadas como mentira, os pedidos da irmã são ignorados, os inúmeros relatos de desenvolvedores que conviveram com Alec e corroboram com as denúncias de Quinn são empurrados para baixo do tapete e o histórico de transtornos mentais de Alec é explorado unicamente para traçar um perfil de homem vulnerável, vítima de injustiças.
Mesmo que partamos do pressuposto de que essa narrativa não foi intencional e perversamente distorcida para culpabilizar as reais vítimas, os argumentos usados pelo grupo são extremamente frágeis.
Ao alegarem que acusações deveriam ser restritas ao sistema judiciário, e não publicadas em redes sociais, mostram-se completamente ignorantes à realidade das vítimas de abuso sexual. Menos de 1% das acusações desse tipo de violência nos EUA feitas à polícia resultam em condenações, mesmo que um estudo publicado em 2009 estime que a porcentagem de denúncias falsas de estupro varie entre 2 e 8%. Dados da US Equal Employment Opportunity Commission, agência federal americana que administra e aplica leis contra a discriminação nos locais de trabalho nos EUA, mostram que três de quatro casos de assédio não são reportados a supervisores. Há inúmeras razões para isso: a banalização ou normalização do assédio sexual, a vergonha e culpa que sentem, o medo de que ninguém acredite nelas, de serem culpabilizadas etc.
No Brasil não é muito diferente. Segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2018, foram registrados 49.497 casos de estupro nas polícias brasileiras, mas considerando a subnotificação, estima-se que ocorram entre 300 mil a 500 mil estupros por ano, de acordo com a projeção do Atlas da Violência 2018, com dados de 2016.
Nessa narrativa manipulada, fingem desconhecer que a cultura do cancelamento é um fenômeno generalizado de redes sociais, um boicote cultural decorrente da economia da atenção, e não algo exclusivo de círculos feministas ou progressistas. Existe em qualquer espaço digital e vem de todas as direções, se manifestando organicamente.
Só no último mês, vimos duas grandes tentativas de cancelamento no meio de games — uma delas resultando em ataques e ameaças de violência. E elas vieram justamente de comunidades tóxicas alinhadas ao pensamento gamergate.
No começo de agosto, os criadores de Ooblets foram “cancelados” para essa galera, apenas por reconhecer que uma decisão crucial para eles (tornar o jogo exclusivo a Epic Game Store) poderia resultar em revolta. “Achar que você é dono do produto do trabalho de outras pessoas nos seus próprios termos, caso contrário você o pirateará, é a epítome da palavra ‘posse’ (entitlement), que as pessoas usam para discutir gamers tóxicos e imaturos”, escreveu o desenvolvedor Ben Wesser em um anúncio franco e bem humorado. Foi o suficiente para receberem ameaças de violência, difamação e declarações antissemitas de uma multidão — justamente o que eles temiam.
Duas semanas depois, foi a vez dos desenvolvedores de Ion Fury lidar com uma tentativa de cancelamento na forma de um review bombing de seu jogo no Steam apenas por terem se desculpados dos comentários transfóbicos e machistas de membros de sua equipe e removido duas piadinhas homofóbicas dentro do próprio jogo. Preocupados com as avaliações negativas, os desenvolvedores decidiram retomar o conteúdo homofóbico. Sem mulheres na equipe e aparentemente alinhados a uma mentalidade machista, neste caso os criadores foram poupados de ameaças e ofensas graves.
Se existe uma uma cultura do cancelamento maciça em games, ela vem justamente de comunidades e fandoms de maioria masculina, alinhados à discursos de ódio, tendo como alvo normalmente mulheres e minorias que, por uma razão ou outra, “desagradam” homens. Esses grupos põem em prática planos de intimidação, que prejudicam e aterrorizam concretamente seus alvos. Foi assim com a streamer Gabi Catuzzo, por reagir a comentários machistas, com a designer de narrativa Jessica Price, por reagir a um típico mansplaining e com a escritora Amber Scott, por ter incluído uma personagem transgênero secundária em Baldur's Gate: Siege Of Dragonspear. Nos dois primeiros casos, as companhias Razer e ArenaNet, respectivamente, legitimaram o discurso de ódio, atendendo aos pedidos da multidão enfurecida.
Mesmo que cheguemos a um acordo de que a cultura do cancelamento é prejudicial (o que não seria muito difícil de afirmar), estaríamos desviando completamente do problema, que a narrativa distorcida tenta esconder: de que os espaços de games, públicos ou privados, profissionais ou não, concretos ou digitais, ainda são fortemente contaminados por uma mentalidade machista e reacionária, que aceita a convivência com mulheres e minorias desde que eles se mantenham calados e invisíveis e estejam disponíveis para serem usados, objetificados e ridicularizados. Submissos.
Os transtornos mentais de Alec, o real causador de sua morte, são um problema isolado que, se por alguma razão se conecta a essas questões, é pela quantidade de vítimas de abuso que ele fez. Um dos relatos mais contundentes vieram não de outra mulher, mas de Scott Benson, artista que trabalhou com Alec durante 6 anos, com quem ele desenvolveu Night in the Woods, ao lado também de Bethany Hockenberry. É um recorte transparente, intimista e assustador da sua vida, sobre como ele se envolveu com uma pessoa inicialmente confiável e se viu preso a um manipulador, sem que ele tivesse para onde fugir.
“Dependendo de quem responder, ele era meu amigo, meu colaborador, um pesadelo, a origem do meu PTSD (transtorno de estresse pós-traumático) e a razão para que eu fizesse terapia. Às vezes tudo isso ao mesmo tempo”, conta Scott. “Há várias pessoas que poderiam dizer as mesmas coisas sobre ele. Muitas delas, pelo que estou descobrindo”.
De acordo com Scott, o comportamento volátil e destrutivo de Alec afetava profundamente as pessoas ao seu redor, muitas das quais se viram obrigadas a eventualmente se afastar, razão para que Alec não conseguisse se manter por muito tempo com um único grupo — todos os seus jogos principais foram feitos por equipes diferentes.
Ainda de sua versão: “Enquanto eu enalteço o trabalho de Alec, considere isto: pessoas deixaram a indústria por causa do que ele fez. Pessoas desistiram de seus sonhos, da arte que eles queriam fazer. Pessoas, atraídas pela promessa de trabalhar com um desenvolvedor indie renomado, se viram obrigadas a abandonar seus sonhos e estabilidade financeira para fugir dele. Pessoas gastaram anos com ele sendo uma presença destrutiva em suas vidas. Pessoas desenvolveram PTSD. Pessoas gastaram horas e dinheiro em terapia. Pessoas se viram encurraladas por ele. É difícil para mim pensar como o trabalho de um homem vale tudo o que ele fez a tanta gente. O que quer que seja que Alec sentiu em seu coração que ele fez com as pessoas, o que na verdade se manifestou no mundo foi frequentemente abusivo. Alec se foi. Mas o que ele fez nas pessoas permanece.”
Efeitos de uma indústria desigual
Se mulheres encontram no Twitter e na exposição pública, com todos os danos que ela traz, a única alternativa para denunciar os abusos pelos quais elas estão passando em nossa indústria, é porque a situação é grave. E não é preciso muito esforço para admitir que elas estão certas. Basta olhar para a escancarada desigualdade de gênero e falta de diversidade desses espaços, especialmente ambientes de trabalho.
Apesar das transformações recentes do meio, a indústria de games continua sendo um ambiente substancialmente masculino. Segundo a última edição da pesquisa State of the Gaming Industry, respondida por aproximadamente 4 mil pessoas de diferentes países, que participavam da Game Developers Conference 2019, 77% dos profissionais de games se identificam com o gênero masculino. Apenas 19% marcaram o gênero feminino. 2% responderam “outro” e 2% não responderam a questão.
Na indústria brasileira, a divisão é bem semelhante. De acordo com o II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, realizado pelo Ministério da Cultura e divulgado em 2018, 79,3% dos estúdios nacionais são compostos por pessoas que se identificam com o sexo masculino e 20,7% com o feminino (cisgênero e transgênero).
Se fizermos uma comparação com dados do relatório de diversidade da Associação Internacional de Desenvolvedores de Jogos (IGDA) de 2016, realizado entre 2014 e 2015, com 2 mil participantes de todo o mundo, vemos pouca variação, o que pode indicar estagnação: 75% masculino e 22% feminino.
Além do gênero, outro fator de desigualdade se destaca nas pesquisas: etnia. O relatório de diversidade de 2016 da IGDA aponta que 76% são brancos. No Brasil, de acordo com o II Censo, apenas 10% se declara afrodescendente, um número preocupante quando pretos e pardos representam mais da metade da população brasileira (46,7 e 8,2%, respectivamente) no ano de 2017, segundo o IBGE.
Para piorar, todos esses estudos indicam que as mulheres continuam relegadas a cargos administrativos, financeiros ou de vendas, raramente ocupando posições criativas, técnicas ou de liderança — quase sempre, com salários menores que de homens.
Um ambiente com pouca diversidade opera com os mesmos pensamentos e perspectivas, amordaçando quem ousa pensar e agir de forma diferente. Prevalecem os mesmos preconceitos e mentalidade. É a fórmula perfeita para casos de abuso e intimidação.
O que levou Holowka a desenvolver transtornos tão graves não é de conhecimento público (e nem deveria ser), mas em seu obituário, Eileen Holowka diz que Alec também era uma vítima de abuso. Não é difícil imaginar que isso esteja relacionado ao fato de ele próprio ter machucado tantas pessoas — e, como Scott descreve em seu texto, ter sofrido tão profundamente com isso.
Um ciclo de abusos só é interrompido quando os abusadores reconhecem e assumem os males que estão fazendo para manter o poder e o controle. Antes que isso aconteça, é comum que passem por um longo período de negação. Que neguem usar de violência física, emocional e sexual para obter submissão. É nesse estado que a indústria de games se encontra: em negação. E assim, o ciclo continua.
Com o programa “Bom dia, chat!”, Caio Teixeira e a audiência do Overloadr criam uma primeira página de jornal fictícia semanalmente. A cada programa são discutidas as principais notícias do período, com foco na contextualização de cada informação e troca de conhecimento.