Mosaic é um retrato sombrio da vida adulta no mundo capitalista

Em 1936, o comediante Charles Chaplin lançou Tempos Modernos, um de seus filmes mais famosos. Na obra, que ainda seguia as convenções do cinema mudo, Chaplin toca na desumanização em decorrência do processo de industrialização e modernização da sociedade. Seu retrato do capitalismo exploratório, que massacra seus operários em função da produtividade, se mantém atual até hoje, quase um século depois.

Em 1936, o comediante Charles Chaplin lançou Tempos Modernos, um de seus filmes mais famosos. Na obra, que ainda seguia as convenções do cinema mudo, Chaplin toca na desumanização em decorrência do processo de industrialização e modernização da sociedade. Seu retrato do capitalismo exploratório, que massacra seus operários em função da produtividade, se mantém atual até hoje, quase um século depois.

De certa forma, Mosaic, jogo do estúdio norueguês Krillbite, representa em forma de videogame aquilo que Chaplin apresentou no cinema, abordando os efeitos dos tais “tempos modernos” em um indivíduo condicionado à rotina brutal de trabalho em uma grande corporação, além do consumismo e da tecnologia que o rodeia. O humor, pouco explorado nos jogos, dá lugar a um terror atmosférico que, parando pra pensar, é estranhamento mais predominante a essa linguagem do que a comédia. A própria Krillbite já é bastante familiar ao gênero, tendo lançado em 2014 Among the Sleep, que constrói o medo a partir do ponto de vista de um bebê. De certa forma, Mosaic segue nessa mesma linha, mas explorando os medos na vida adulta.

E o que seria mais aterrorizante para um millenial do que perceber que sua vida se resume a um emprego que você odeia? Que consome tanto sua vontade de viver que você mal consegue levantar da cama, se apegando ao celular para obter qualquer forma de satisfação de sua rotina miserável, enquanto se arrasta até o metrô onde passageiros amontoados viram o rosto a qualquer sinal de contato visual.

Mosaic é sobre a deprimente realidade de alguém que se vê submetido a um sistema movido a dinheiro, que o trata mais pelo seu potencial de compra ou produção do que como um ser humano. Nesse mundo cinza, iluminado pelas luzes frias dos painéis de propaganda e das telas de celular, a gente controla um jovem qualquer que, em meio a óbvios sintomas de depressão, busca algum sentido na vida que ele encontrou para si.

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Se suas ações parecerem lentas demais nessa sua insignificante rotina interminável, a qualquer momento, enquanto caminha ou realiza alguma ação, você pode usar seu smartphone para checar notícias, ver mensagens, jogar BlipBlop, conhecer alguém em um app como o Tinder e comprar e vender moeda digital em um mercado de Blipcoins. As notícias, porém, são deprimentes; as mensagens são em sua maioria enviadas por um sistema automático da empresa que te contratou, te pressionando psicologicamente para chegar mais cedo e ser mais produtivo; o Tinder só funciona para casais heterossexuais; os ganhos com a venda de Blipcoins nunca são suficientes para pagar suas dívidas e o BlipBlop é um clicker intencionalmente criado para te viciar, desprovido de qualquer significado e composto apenas por barrinhas que dão uma sensação ilusória de progresso. Ironicamente, esse joguinho pode ser baixado de verdade na AppStore e Google Play, onde ele possui ótimas reviews de usuários que acham que seu fator viciante é um aspecto positivo.

Se Mosaic consegue fazer com que seu mundo opressor, desumano e deprimente cause um grande impacto é porque ele reflete inúmeros aspectos da nossa própria realidade. Ele está falando da alta densidade populacional amontoada em apartamentos minúsculos. De cidades projetadas mais para carros do que para seres humanos. Da desconexão das pessoas, que evitam qualquer forma de contato e se limitam a olhar para seus smartphones. Da relação de trabalho baseada unicamente em produtividade. De dinheiro, controle e poder.

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Mas mais do que ser apenas um espelho, Mosaic é um grito por mudança e é isso que o torna tão tocante e bonito. Nosso trabalhador anônimo e solitário sabe que precisa encontrar uma saída. Em meio à frieza desse mundo, ele busca sua fuga nas pequenas coisas mundanas: em um breve banho de sol na janela do corredor do prédio, no ronronado de um gatinho ou nas melodias de um músico de rua. 

nesses atos de desobediência, em que desviamos do caminho para o trabalho para sonhar com uma vida melhor, ganhamos o poder da inspiração. Ela nos permite literalmente destruir aquilo que nos aprisiona e olhar para a realidade de novos ângulos. Entre devaneios e alucinações, nosso herói encontra na natureza e na arte uma forma de se reconectar à sua própria humanidade. E é essa pulguinha atrás da orelha, ou no caso um peixinho dourado falante, que faz com que ele nunca desista de procurar a fenda para essa nova vida, nem que, para isso, ele precise destruir completamente o que ele entende como verdade.

Com poucas palavras, Mosaic é um apanhado de sequências poéticas e surreais cheias de significado, sentimentos e contemplação. É um pequeno conto moderno sobre a incansável busca do ser humano pela liberdade e felicidade em um mundo doente regido por dados, consumo e crescimento econômico. E para uma geração tão marcada pelo esgotamento físico e mental e pela depressão, mais do que nunca a gente precisa de obras que nos façam refletir sobre o estilo de vida ao qual fomos condicionados, especialmente em um meio em que pessoas buscam refúgio da realidade enchendo barrinhas de progresso ilusório.

Mosaic
Desenvolvido pela Krillbite
Distribuído pela Raw Fury
Disponível para PC, Mac, Linux e iOS. Lançamento no começo de 2020 para Xbox One, PS4 e Switch
A análise foi feita com uma cópia do jogo providenciada pela Raw Fury