Como Damas, Xadrez e jogos de tabuleiro ajudaram na desconstrução de shmups em Next Jump
Ao pensar em um shoot ‘em up – ou, simplesmente, shmup, aqueles jogos que eram costumeiramente chamados “de navinha –, é provável que sua primeira reação seja a de associá-los a títulos frenéticos, que pedem por reflexos e tempos de reação altos. Eu sei que essa é a ideia que eu tinha deles, acompanhando do sentimento de impotência diante de uma chuva de tiros ou da presença de inimigos constantes ao ponto de ficar paralisado, sem ter ideia de como evitar todos esses perigos.
Não é assim que o gênero é enxergado por Filipe Dilly, desenvolvedor de Next Jump: Shmup Tactics, jogo que desconstrói os shoot ‘em ups para transformá-lo em algo focado em tática por turnos. Next Jump pede que passemos por batalhas em diferentes pontos de uma galáxia para alcançarmos as naves de dragões, que roubaram bebidas muito apreciadas por humanos, elfos, orcs e anões, que protagonizam a aventura.
Os combates que temos no caminho pedem que usemos sabiamente o número de saltos que nossa nave pode dar antes que um turno passe, sendo que esse tempo pode ser estendido quando absorvemos energia de inimigos abatidos. Ao mesmo tempo, é sempre preciso prestar atenção na trajetória que inimigos e seus disparos estão tendo na tela, tomando cuidado para não nos posicionarmos em um quadrante que, quando chegarmos na próxima etapa, será atingido por algo que nos machucará. E o curioso é que, por mais que essa descrição soe como uma estritamente de um título de estratégia, ainda é possível sentir constantemente a essência de um shoot ‘em up em Next Jump.
“O shmup tem alguns pilares,” me diz Filipe em uma conversa que tivemos, “mas a verdade é que eles são mais jogos de puzzle do que de ação. Se você perguntar para um desenvolvedor japonês, ele te dirá que é um puzzle. É sobre reconhecimento de padrões. Você os entende e aí reage.”
Filipe passou um tempo considerável do cerca de um ano e meio de desenvolvimento do jogo fazendo pesquisas, lendo entrevistas com desenvolvedores japoneses e estudando design, para poder compreender exatamente quais os traços que determinam o shmup e, consequentemente, como ele poderia ser desmontado.
Uma das maiores dificuldades estava na velocidade do jogo. Em uma de suas versões iniciais, seu título estava muito lento e truncado, algo que vai diametralmente contra experiências de shmups, que em pouco tempo colocam diversos inimigos em nossa frente, já disparando, e pedindo que comecemos a nos mexer. Essa cadência que nos faz estar sempre alertas não é um acidente. Ela é bem ajustada pelo fato de que as fases correm sozinhas, pedindo de nós ações, estejamos prontos para elas ou não. Foi ao notar isso que Next Jump começou a tomar a forma que tem hoje em dia.
“Quando vi que estava tentando controlar o correr do tempo no jogo, porque ele estava devagar, lembrei de algo óbvio em shmups: você não controla o tempo e espaço. A fase corre automaticamente. Ela sempre acontece do mesmo jeito. Já que no meu jogo não existe tempo por ele ser por turnos, resolvi colocar um número muito específico nisso. Foi daí que surgiu o limite de turnos. São sempre três deles e então se encerra a fase. Então, em vez de ficar tentando simular um estágio inteiro de um shmup a cada combate que o jogador tem, escolhi simular só o loop primário do gênero, que é a ideia de você enfrentar uma chuva de tiros e condição de inimigos específicos.”
O curioso é que duas das peças-chave da estrutura do título apareceram quando Filipe começou a ler mais a fundo sobre design de jogos de tabuleiro. “Comecei a investigar jogos de estratégia e tática que são puzzles, olhando especialmente para Xadrez e Damas. O Next Jump é muito inspirado pelos dois.”
Como mencionado, Next Jump permite que você aumente a duração de um turno ao absorver a energia de inimigos abatidos. Se junto disso você possuir uma bateria em sua nave de melhor qualidade, que pode ser comprada nas inúmeras lojas que encontramos em nossa jornada até os dragões, é possível criar combos que aumentam a quantidade de nossas ações consideravelmente, permitindo que derrotemos muitos inimigos antes que eles sequer possam se mover. “Essa ideia específica veio de Damas, do conceito de atacar e comer ao mesmo tempo, sem parar seu movimento por conta disso”. Junto do número fixo de turnos, o dinamismo que Filipe desejava, essencial a um shoot ‘em up, já estava se formando.
O Xadrez, por sua vez, foi a base para a disposição dos inimigos nas fases, descritas às vezes como “tabuleiros” pelo desenvolvedor. “Eu peguei do tabuleiro de Xadrez a ideia de ordem de inimigos. Então os inimigos mais fortes estão atrás, que seriam como a rainha ou um bispo, com mais movimentos, mais chances de atacar, e os peões estão mais na frente. Cada vez que o tabuleiro é criado ele é basicamente isso. A ideia é gerar padrões que te permitem matar os inimigos mais fracos para gerar combos que te permitem matar os inimigos mais fortes depois. A última coisa que fiz foi fazer com que os inimigos ataquem primeiro. Assim que você salta, eles já fizeram um movimento. Você não toma dano no começo da fase, mas as balas já são assim peças no tabuleiro.”
Com isso, mesmo que tudo só ocorra por turnos, a impressão constante é de já estarmos entrando em um ponto avançado de um estágio de um shmup, como se nos largassem em um ponto que a guerra já tinha começado e só então tivéssemos a chance de lutarmos pela nossa vida. A inspiração do Xadrez também foi utilizado para que novos inimigos fossem apresentados ao jogador progressivamente. Como os mais poderosos estão ao fundo, temos a chance de observar seus movimentos com certa distância de segurança, para que entendamos como eles agem.
Se atendo à ideia de que o gênero está mais para puzzle do que para ação, propositadamente não há uma indicação na tela sobre qual direção os inimigos irão seguir ou como seus disparos se comportarão. Cabe ao jogador passar a reconhecer padrões. “É como aprender as peças de Xadrez,” diz Filipe. A única consequência – e isso foi algo que também senti por conta própria – é que por conta disso acontece ocasionalmente de não entendermos exatamente como e por que morremos. “Eu estou recolhendo feedback dos jogadores e uma das coisas que tenho ouvido é que eles gostariam que o jogo fosse mais óbvio, mostrando como eles morreram, que é uma coisa em que estou trabalhando. Isso é algo que acontece, mas acabou sendo uma decisão proposital porque tudo que eu colocava no jogo para impedir isso o tornava lento e eu não queria que isso acontecesse.”
Parte disso também são dores de crescimento de alguém que começou a trabalhar com o desenvolvimento de jogos recentemente, uma guinada completa na carreira que tinha até então. Filipe trabalhou como animador por sete anos, mas se cansou da área e só recentemente resolveu começar a criar jogos. “Tive certo sucesso trabalhando com animação, concorri no Anima Mundi, ganhei alguns festivais menores. Mas você faz a película, está ali bonitinha a longa-metragem, mas ela acaba ali. Você não faz nada com aquilo. Então era muito frustrante, ainda mais depois de anos fazendo a mesma coisa.” Para descansar a cabeça após o término de um desses trabalhos, o então animador resolveu aprender a programar e dedicou suas férias a isso. “Uso Linux e fui estudar uma engine que rode nele. Achei o Stencyl, então comprei um livro sobre”.
Parte do aprendizado se deu através de Game Jams, sendo a que mais trouxe benefícios a Stencyl Jam 2015, conduzida pelo New Grounds. “Foi uma Game Jam bem longa, por isso que consegui fazer o jogo, porque eu programava muito devagar. Fiquei um mês fazendo o jogo no meu intervalo de aula, pois na época eu trabalhava como professor de ilustração digital, na Casa dos Quadrinhos, uma escola técnica, ou quando voltava para casa.” Com o projeto conhecido então como The NEXT Jump, Filipe ficou em terceiro lugar na competição. Isso não só serviu como incentivo como também concedeu a ele um prêmio em dinheiro, usado para pagar o compositor das músicas do jogo e pelas ilustrações de abertura, as únicas coisas que não foram feitas por ele. Há cerca de um ano – mais ou menos seis meses depois de começar a programar –, após fazer algumas economias, ele largou seu emprego e se mudou de Belo Horizonte para São Paulo, período a partir do qual se concentrou exclusivamente no desenvolvimento de Next Jump.
Enquanto a programação do jogo já foi feita prevendo atualizações futuras – ele pode receber com facilidade o acréscimo de novos upgrades e existe uma série de modalidades que deverão ser adicionadas –, algumas coisas que soam inicialmente simples que não foram propriamente planejadas, e agora se apresentam como barreiras.
“Uma das coisas que mais queria era fazer era tradução para português, mas só conseguirei isso se o jogo vender bem. Como nunca tinha programado uma interface complexa assim, quando terminei de programar vários sistemas de interface principais e fui começar a traduzi-la, vi a besteira que eu tinha feito. A forma como programei foi um tiro no pé, não consigo traduzir facilmente a interface. Me esqueci de pensar na tradução, que é muito importante. Eu quero muito fazer isso, mas preciso que o jogo venda uma certa quantia para poder dedicar um mês inteiro só para a localização.”
Independentemente de qual o sucesso que Next Jump encontrar, existem duas certezas. A primeira, é de que Filipe certamente continuará desenvolvendo jogos. Na verdade, um próximo projeto já está em seus estágios iniciais, sendo feito ao lado dos quadrinistas Luís Felipe Garrocho – também conhecido como Liper Gomba –, autor do Bufas Danadas, Bidu Caminhos, Bidu Juntos e outros, e Ricardo Tokumoto – também conhecido como Ryot –, autor das Ryotiras, os Manuais da Autodestruição e outros (Ryot também já gravou uma edição do Bilheteria conosco). A segunda certeza é de que, de uma forma ou de outra, seu jogo de estreia continuará sendo um projeto no qual ele se dedicará de tempos em tempos. “Eu quero sempre estar mexendo um pouquinho no Next Jump, não quero deixar ele morrer.”
Next Jump: Shmup Tactics está à venda no Steam por R$ 10,49.