Neo Cab aborda a uberização do trabalho em um mundo dominado pela automação

Qual é a consequência de um mundo em que aplicativos e algoritmos regem nossa relação com o espaço, com serviços, com nosso sono ou até mesmo com nossos próprios sentimentos? Neo Cab, jogo da Chance Agency para PC, Switch e Apple Arcade, pode ser visto como um “simulador de motorista de Uber”, mas é muito mais do que isso.

Seguindo a linha temática de Black Mirror, ele nos apresenta um mundo no qual a relação entre as pessoas é ditada pela tecnologia, que, por sua vez, está nas mãos de corporações. E a população não parece se importar com o fato de que seus dados são tratados como moeda de troca. Afinal, para quê serve privacidade quando se têm carros autômatos?

Nesta versão um pouco exagerada mas bem próxima da nossa realidade você é Lina, uma das últimas motoristas humanas em um mundo cada vez mais dominado pela automação, que chega em Los Ojos, uma espécie de Los Angeles distópica, na tentativa de começar uma nova vida e reatar a amizade com Savy, velha amiga sua.

Mas antes mesmo de poder comemorar na balada local sua chegada, Savy desaparece misteriosamente. Sem moradia, Lina se vê obrigada a trabalhar para bancar hospedagens e ter um lugar para dormir, enquanto busca por informações sobre o paradeiro de Savy.

Para piorar, Los Ojos passa por um estado de vigilância em decorrência do poder político da Capra, a empresa por trás não apenas do maior serviço de transporte por aplicativo, mas também dos postos de abastecimento eletrônico, que carrega as baterias dos veículos, e de uma rede popular de hotéis-cápsula. Ou seja, não importa para onde você olhe, você verá o logotipo de Capra estampado em algum canto da cidade. E nesse monopólio neoliberal, você é tratada como um bug no sistema a ser eliminado a qualquer instante — e por vias legais.

É um jogo sobre olhar as pessoas não pelas costas ou de seus próprios pontos de vista, mas de frente, com suas feições e expressões. É um jogo sobre diálogo e empatia.

Neo Cab não está interessado em dar ao jogador desafios de direção nem nada do tipo, que é o que normalmente a gente vê em jogos sobre pessoas em veículos. Como o designer de narrativa do jogo Bruno Dias explica em entrevista no nosso podcast MotherChip, dirigir é uma tarefa automática para a protagonista Lina, ao contrário da interação com os passageiros, que é onde está o real desafio para a personagem. Um desafio de resiliência emocional. E é isso que é passado ao jogador.

Assim, há uma inversão de perspectiva. A gente deixa de ver o mundo da traseira do carro ou do volante, que é a norma em videogames, para olhar diretamente para os rostos dos personagens, com Lina no banco da frente e os passageiros no banco de trás. Ou seja, é um jogo sobre olhar as pessoas não pelas costas ou de seus próprios pontos de vista, mas de frente, com suas feições e expressões. É um jogo sobre diálogo e empatia.

Neo-Cab-2.jpg

Isso faz ainda mais sentido quando consideramos que nesse mundo a automação reduziu o contato entre as pessoas. Então quem usa o serviço Neo Cab, de motoristas humanos, o usa pelo fato de haver um indivíduo ali com o qual eles possam interagir, se abrir e bater um papo. Então a gente acaba sendo mais que uma motorista: somos uma espécie de terapeuta motorizada.

Outra razão para que algumas pessoas dêem preferência ao Neo Cab é justamente por conta do monopólio da Capra, que coleta dados dos usuários que usam sua rede de veículos autômatos, a princípio para exibir propagandas durante suas viagens. Mas conforme a trama avança, a gente descobre que há algo um pouco maior por trás de tudo isso.

Mais do que apenas escolher opções em uma árvore de diálogos que resultam em diferentes desfechos, Neo Cab coloca o jogador em um sistema interconectado repleto de decisões difíceis.

Neo-Cab-3.jpg

Você escolhe confrontar o usuário que vomitou no seu carro e correr o risco de receber dele uma pontuação negativa ou sufocar sua dignidade para garantir a pontuação máxima e sua permanência no serviço? Você decide extrapolar suas energias e cumprir mais uma corrida para aumentar seus ganhos e a chance de obter informações sobre a Savy ou segue as dicas do seu corpo e encerra o expediente? Você opta por dormir nas cápsulas acessíveis, entregar seus dados de mão beijada e contribuir para o monopólio da Capra ou gastar a maior parte dos seus ganhos em um quarto de hotel decente? Você paga uma multa injusta ou compra a vista grossa do policial?

Sua experiência é permeada por decisões como estas que trazem não apenas consequências diretas à trama, com seus múltiplos finais, mas também afetam as emoções de Lina, mapeadas por um sensor luminoso usado por ela (e por muitos cidadão de Los Ojos) em forma de bracelete. Esse objeto, por uma razão explicada na trama, expõe ao jogador (e aos passageiros) seu estado emocional, mudando de cor dinamicamente conforme os eventos e situações que ela vive. Mas além de nos lembrar o tempo todo que o que está por trás do volante é um ser humano, as emoções estão diretamente atreladas a algumas decisões, às vezes só te permitindo agir de determinada forma se Lina estiver contente ou neutra, às vezes impedindo certas decisões se ela estiver magoada ou enfurecida.

Neo Cab trata diretamente de uma série de problemas relacionados à forma como a tecnologia tem moldado a nossa sociedade, da precarização do trabalho, com a falta de garantias e direitos a prestadores de serviços, ao fim da privacidade e a normalização da venda de dados privados.

Ele faz um exercício de imaginação com base na realidade que é muito presente no gênero de ficção científica da literatura, do cinema e da TV, mas um tanto ausente nos videogames, mesmo que esse seja um dos gêneros mais comuns dessa linguagem — e talvez pelo simples fato de que jogos costumam se focar mais no que o personagem faz do que no que ele pensa, sente e fala. Se essa fosse a lógica de Neo Cab, teríamos um jogo sobre dirigir um veículo e entregar passageiros aos seus destinos, e não um drama tecnocrata.

É um jogo que já seria interessante só por nos colocar na pele de um motorista de aplicativos como Uber e 99, nos permitindo sentir as pressões e angústias que essa classe de trabalhadores sofre. Mas ele vai muito além, com uma trama corajosa que toca em muitos aspectos da realidade, da maneira como nos escondemos atrás de filtros de Instagram aos perigos de políticas públicas contaminadas por interesses financeiros.

Neo Cab entrega não apenas uma experiência narrativa excelente e bem escrita, mas também madura, consciente e relevante, que reforça a capacidade dos jogos de nos conectar com a realidade, em vez de nos esquivar ou proteger dela.

Neo Cab está disponível totalmente em português para PC, Switch e Apple Arcade. No Steam, seu preço base é de R$ 28,99.