Criação de jogos NFT no Brasil gera atrito e preocupação entre desenvolvedores locais
"Ganhe criptomoedas e saiba mais sobre NFTs e Games!". Não é exatamente isso que você espera ler no título de uma newsletter de um festival de jogos independentes brasileiro, reconhecido internacionalmente, que, em 2022, completa 10 anos. Embora a relação do BIG Festival (Brazil's Independent Games Festival) com empresas de criptomoedas tenha começado a ser divulgada em março, uma parte da indústria de games brasileira está encarando a onda dos jogos play-to-earn desde o final de 2021.
Jogos baseados na compra e venda de recursos tokenizados e NFTs em mercados digitais altamente especulativos, chamados de play-to-earn, foram bastante difundidos no ano de 2021. O fenômeno deslanchou com a rápida popularização de Axie Infinity e a valorização abrupta (e não muito duradoura) de seus ativos. Mas embora esse movimento seja relativamente novo, já existem mais de mil títulos play-to-earn disponíveis ou em desenvolvimento no mundo, de acordo com o site PlayToEarn, um dos que lista e monitora a crescente onda de jogos, NFTs e tokens de criptomoedas existentes no mundo digital. Parece pouco perto da vastidão dos mais de 10 mil títulos que foram lançados no Steam apenas em 2021 (que, inclusive, baniu os jogos play-to-earn de sua plataforma em outubro), mas ao se levar em conta que os criptogames ganharam tração popular há menos de um ano, o número surpreende.
É difícil precisar quantos destes jogos estão sendo feitos no Brasil. A última edição do Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, que detalhou o tamanho da indústria e o perfil das empresas e dos profissionais de games no território, foi divulgada em 2018, quando o movimento play-to-earn ainda não havia sido difundido. Uma nova edição do censo está prevista para sair em junho de 2022 e deve contar com algum levantamento sobre jogos dessa natureza criados no país.
Contudo, dentre esses mais de mil títulos monitorados, já é possível identificar diversos projetos play-to-earn desenvolvidos no Brasil, a maioria por empresas novas, fundadas entre 2021 e começo de 2022. Dentre os estúdios estabelecidos antes desse período que já anunciaram a entrada no universo cripto está a gigante paulistana especializada em jogos mobile Wildlife, cujo valor de mercado é estimado em US$ 3 bilhões (R$ 14,2 bilhões) – para efeito de comparação, a tradicional Sega, que também vem demonstrando interesse em investir em NFTs, vale US$ 4 bilhões (R$ 18,9 bilhões).
A maioria das empresas que trabalham com o modelo play-to-earn, seja desenvolvendo jogos, seja investindo nesse ecossistema, contudo, são novas, como a Bayz, fundada em São Paulo em janeiro de 2022. Em seu website e redes sociais, ela se classifica como uma empresa de educação (edtech), e foca seus negócios na geração de conteúdo, atraindo novos jogadores e investidores em torno dos jogos play-to-earn e ajudando a manter a máquina em movimento. No final de 2021, a Bayz recebeu um aporte de US$ 4 milhões (R$ 18,75 milhões) da Yield Guild Games, uma guilda de investidores de Axie Infinity, em parte responsável pelo sucesso do jogo e por impulsionar o modelo de scholarships (que abrem brechas para relações de trabalho precarizadas) e até financiou um documentário que argumenta que o jogo contribuiu para a renda de famílias pobres nas Filipinas durante a pandemia. Em março de 2022, a Bayz anunciou uma parceria com Bruno “Nobru” Goes e Lúcio “Cerol” Lima, dois dos maiores jogadores de Free Fire do mundo, que somam mais de 43 milhões de inscritos nas redes sociais, para “desmistificar NFT games.”
A roupagem de educação vem sendo usada por diversas empresas ligadas ao setor de jogos play-to-earn. Ancorado na cultura financeirizada das criptomoedas, esse ambiente foi inundado de coaches, instrutores e treinadores que prometem ensinar como obter retorno financeiro a curto prazo e investir nos jogos mais rentáveis. Na plataforma de cursos online Hotmart, na categoria de games, dentre os itens classificados como “mais relevantes”, além de cursos tradicionais de desenvolvimento e arte para games, há promessas de métodos milagrosos para lucrar rapidamente com jogos play-to-earn. Um deles, intitulado “Milionário NFT Games”, custa R$ 997.
Essa camada de vendedores de cursos, propagadores e evangelistas fazem parte de um sistema que precisa da constante entrada de novos investidores. “Essa é uma simplificação grosseira que não me agrada muito, mas que guarda um efeito análogo ao esquema de pirâmide. Você precisa trazer mais gente para a coisa funcionar, para você injetar mais recursos”, explica Edemilson Paraná, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, autor dos livros A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional e Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico.
“O que sustenta a valorização do bitcoin?” indaga Paraná, aqui usando o ativo digital para falar das criptomoedas como um todo. “É um aumento do bitcoin por conta de seu uso para alguma coisa? Não é. É só expectativa de que o bitcoin vai subir. É um ativo especulativo por excelência, que não tem ligação com nenhum fundamento econômico real. Ele sobe por conta das expectativas das pessoas. Quanto mais elas acham que ele vai subir, mais ele sobe. Isso tem a ver com momentos de oferta e demanda. Só que ele sobe muito rápido e também cai muito rápido. É muito volátil.”
O alto investimento em propaganda e conteúdo seria, portanto, fundamental para trazer mais pessoas para esse ecossistema e manter a alta das criptomoedas. Paraná adiciona: “E você tem que levar esse negócio pro maior número de dimensões da vida digital e não digital. Então o que eu puder tokenizar, colocar numa NFT, colocar na blockchain e ligar num esquema de criptomoeda, eu tenho que conectar. E o mundo dos jogos me parece ser uma coisa muito lógica, automática quase.”
“Nós estamos passando por um processo de décadas de um tipo de socialização e formação baseado num comportamento altamente competitivo e monetizado, centrado no sucesso econômico como um valor fundamental de distinção social, que exalta fortemente os valores do empreendedorismo, da inovação, da criação, em que você age e se comporta como uma empresa de si mesmo. Você é um capital humano, que valoriza, que investe em si mesmo, para aferir ganhos. Toda a linguagem que organiza a sua subjetivação se torna a linguagem empresarial, individual, maximizadora, competitiva. E claro que isso joga água no moinho desses processos e reforça uma cultura que, de outro lado, caminha na direção dessa financeirização de todas as dimensões da vida social. Como se toda vida social passasse a funcionar à imagem e semelhança do ganho financeiro. Então você está sempre buscando ganhos de curto prazo.”
Avanço sobre a indústria de games
Esse movimento alcançou o BIG Festival (Brazil's Independent Games Festival), o principal evento de desenvolvimento de jogos da América Latina, com foco na cena independente. Em março o evento causou estranhamento em setores da indústria de games brasileira ao fazer posts em redes sociais e disparar e-mails de propaganda da corretora de criptomoeda Ripio, de origem argentina, que abriu filial no Brasil em 2021, e que se tornou a patrocinadora master do festival. A Ripio vem promovendo jogos play-to-earn desde julho de 2021, quando passou a trabalhar no Brasil com os tokens de Axie Infinity.
Outra companhia diretamente ligada a jogos play-to-earn que também patrocina o BIG Festival em 2022 é a Zebedee, que embora não seja registrada no Brasil, tem entre seus fundadores um brasileiro. A empresa investe em uma plataforma própria que remunera jogadores e streamers com satoshis – a menor fração de um bitcoin, equivalente a R$ 0,001 – e promove campeonatos de Counter Strike: Global Offensive com base em apostas. Na comunidade da plataforma no Discord, a maioria dos usuários são brasileiros, embora o serviço também esteja disponível nos EUA, países da Europa e Singapura.
Além do BIG Festival receber críticas em redes sociais pela associação com empresas de criptoativos, que promovem o modelo play-to-earn, alguns desenvolvedores que haviam enviado seus jogos para concorrer na tradicional premiação anual do evento solicitaram a remoção de suas inscrições. Um deles foi André Chagas (conhecido como André Yin, criador de Dreaming Sarah) que concorreria com seu jogo Dandy & Randy DX. Em comunidades de desenvolvimento no Discord, alguns membros afirmam que deixarão de participar do evento, mesmo que em sacrifício do networking com publicadoras internacionais e investidores, promovido pelo evento.
A reação de uma parte da indústria e comunidade de jogos ao BIG Festival é um repeteco do que aconteceu com a Game Developers Conference (GDC), principal conferência de desenvolvimento de jogos do mundo, que retomou o formato presencial em 2022, realizada no final de março. O evento contou com dezenas de painéis e estandes sobre NFTs, jogos play-to-earn, metaverso, web3 e outros chavões do momento, a maioria deles patrocinados, mesmo que ela própria tenha realizado uma pesquisa sobre o estado da indústria global de games que aponta que 72% dos mais de 2.700 desenvolvedores entrevistados disseram não ter interesse em criptomoedas. A contradição lhe rendeu uma miríade de críticas dos visitantes e gerou um clima de hostilidade em algumas palestras.
O jornalista dos EUA Giovanni Colantonio, que cobriu a feira para o site Digital Trends, o descreve como um “um microcosmo perfeito para a indústria de videogames no momento. Pareciam duas conferências em competição uma com a outra. Por um lado, era um espaço para os criadores de jogos tradicionais lutarem por mudanças e se conectarem após anos de distância física. Por outro lado, foi um encontro para idealistas de tecnologia ansiosos para traçar um novo curso em um mundo digital. Ambos enfatizaram a importância da comunidade, embora não pudessem estar mais distantes um do outro.”
O produtor de cinema e diretor do BIG Festival, Gustavo Steinberg, foi um dos que esteve na GDC e observou essa movimentação. “É óbvio que existem várias críticas possíveis ao modelo play-to-earn e eu tenho acompanhado bem de perto esse assunto. A própria GDC, mais da metade [do evento] era sobre cripto. Não só cripto, mas blockchain gaming, e aí tem NFT e outras variações embutidas.”
Ele afirma que, se não fossem as patrocinadoras, não existiria BIG em 2022, que, assim como aconteceu com a GDC, retornará em formato híbrido (presencial e online) em julho, no pavilhão de exposições São Paulo Expo. “Se eu tenho um patrocinador cujo produto é açúcar, ninguém tenta boicotar o evento com o argumento de que o açúcar vicia. Acho que tem um lado que é um pouco de pânico com relação à práticas nefastas que de fato existem e um ambiente muito polarizado. Meu primeiro papel como produtor do evento é fazer com que ele continue existindo. Porque se a gente não tiver patrocinador, a gente não tem evento. E segundo é abordar as tendências e direções de mercado. Se as tendências são controversas, a gente vai expor essa controvérsia.”
A pandemia, associada ao desmonte de políticas culturais dos últimos anos, impactaram o BIG, que, para continuar existindo, vem encontrando no setor privado alternativas de financiamento, como uma parceria com a rede de varejo Magazine Luiza. “O que não é necessariamente ruim, se a gente de fato fazer o evento crescer com mais público. Eu te garanto que a gente vai continuar tendo jogo indie como nosso foco, o máximo que a gente conseguir.” Steinberg cita como referência a CCXP, evento privado que tem em seu coração o Artist Alley, que dá visibilidade para artistas nacionais e independentes.
Apesar dos patrocinadores da edição de 2022, Steinberg garante que o BIG não será cooptado pela cultura dos "crypto bros", e que o tema será tratado sem doutrinação, mas também admite que tem conversado com guildas de jogos play-to-earn interessadas em ter espaço no evento. “Eu não posso simplesmente ignorar cripto. Não tem como ignorar porque é um assunto que veio com tudo no mundo inteiro. A gente quer conversar. Mas óbvio que terá palestrantes que vão falar que é maravilhoso, que play-to-earn é ótimo, da mesma forma que tiveram palestrantes no passado que falavam que social game, com aproveitamento da psicologia, do vício humano, era positivo porque gerava mais dinheiro. O debate está aberto. A gente é uma vitrine do que está acontecendo. O BIG a cada ano é uma tendência completamente diferente.”
Apesar dos protestos, o número de inscrições de jogos para a exposição e participação na premiação cresceu em relação ao ano passado: foram mais de 300 títulos brasileiros e mais de 600 do resto do mundo.
“Existem várias tendências sendo afirmadas. Essa [dos jogos play-to-earn] é uma delas. É a mais forte que tem neste ano. Porque objetivamente falando é uma vertente de investimento para jogos. E aí eu tenho a responsabilidade com a indústria local”, afirma Steinberg.
“O que a gente sempre tenta explicar é que temos que atender a vários segmentos. Desde o independente e autoral até estúdios que estão consolidados, prestadores de serviço, e a gente tem um leque de conteúdo que atende todo mundo. Agora você não frequentar um evento porque tem um pedaço do conteúdo que não te interessa ou te irrita, até entendo, mas não sei se é uma reação madura.”
Apesar de criticar publicamente os jogos NFT, o desenvolvedor Marcos Venturelli, CEO da Rogue Snail, de Relic Hunters, defende o BIG. “Acho compreensível. Não acho que a gente tem que desistir das coisas. O BIG é o evento da cena brasileira, com seus defeitos mas também com várias oportunidades, possibilidades e iniciativas legais. É um asset na nossa indústria. Não se pode jogar o bebê fora com a água do banho.”
Movimento predatório?
A súbita abertura de empresas de jogos play-to-earn no Brasil, muitas delas com investimento estrangeiro, indica que, além de muito dinheiro neste meio, há uma alta demanda por game designers, programadores e artistas em projetos que envolvam criptoativos. Embora essa movimentação represente mais oportunidades de trabalho na área, ela tem gerado um certo incômodo entre profissionais da indústria de games, especialmente conforme essas empresas se aproximam de estúdios e profissionais experientes.
“O consenso geral é que é vergonhoso entrar nesse movimento”, afirma Venturelli. “É muito pior do que foi com free-to-play, lootbox”, diz, em referência a outros modelos de monetização de jogos que levantaram dilemas éticos. “Então existe um consenso muito maior de que isso não é legal, de que é maléfico.”
Ele acredita que, embora não haja uma pressão generalizada sobre os profissionais da indústria para trabalhar com projetos de jogos play-to-earn, há muito investimento nesse meio, o que tem atraído especialmente quem já é adepto de NFTs e criptoativos. “É um esquema de enriquecimento rápido. É o caminho mais fácil hoje na indústria.”
“Acho que quem tem uma boa posição na indústria não vai se envolver nesse rolê. Ou por princípios, como é o nosso caso. Ou por uma questão estratégica, de que isso é passageiro e que pode danificar sua reputação e sua marca com a comunidade. Acho que não vale a pena como business case mexer com NFT”, conclui.
Um estúdio que brevemente se envolveu em um projeto de jogo play-to-earn mas acabou dando um passo atrás foi a Mad Mimic, de São Paulo, responsável por Dandy Ace e Mônica e a Guarda dos Coelhos. Embora nenhum anúncio tenha sido feito de forma oficial, o logotipo do estúdio aparecia na aba de parceiros do site da Sp4ce, companhia fundada em Curitiba em setembro de 2021, que conta com participação do fundo de investimentos Select. Antes disso, seus fundadores mantinham um perfil de Axie Infinity voltado ao público brasileiro no Instagram, que acabou se tornando o segundo maior do mundo. Assim como a Bayz, a Sp4ce também movimenta o ecossistema de jogos play-to-earn produzindo conteúdo e promovendo o sistema de scholarships. A diferença é que a companhia também investe no desenvolvimento de um jogo play-to-earn próprio – daí sua aproximação com a Mad Mimic.
“Trabalhamos um tempo com eles, principalmente dando mentoria de como fazer produção de jogos, mas estávamos com visões muito desalinhadas”, me contou o CEO da Mad Mimic, Luis Fernando Tashiro, quando o questionei sobre a presença do logotipo do seu estúdio no site da Sp4ce, um resquício do que havia restado dessa curta parceria. Segundo o desenvolvedor, o prazo para a entrega do projeto era irrealista “mesmo com nossa equipe mais experiente”. Preocupado em manter a reputação de sua empresa, ele abandonou o projeto. O logo da Mad Mimic, contudo, permaneceu no site da Sp4ce até poucos minutos após nossa conversa por telefone.
“Não entendo nada de play to earn”, assume Tashiro. “Depois que a gente teve essa experiência, começamos a estudar para entender o que isso significa. Mas por enquanto não estamos fazendo nenhum movimento. Se a Mad Mimic for seguir nessa direção, eu quero estar bem seguro de onde estamos entrando e onde vamos chegar.”
Fabrício (nome fictício), funcionário da tradicional Aquiris Game Studio, localizada em Porto Alegre, responsável por títulos de sucesso como Horizon Chase e Wonderbox, tem observado tentativas de contratação de profissionais do estúdio por parte de empresas que desenvolvem jogos play-to-earn. De acordo com ele, um de seus colegas de trabalho recebeu uma série de propostas da Prota Games, uma empresa fundada por brasileiros mas sediada fora do Brasil, que além de oferecer cursos de jogos free-to-play, como League of Legends e Fortnite, está investindo no desenvolvimento de um jogo play-to-earn. Conforme o amigo ia recusando as propostas feitas pela Prota para trabalhar em seu jogo, a empresa aumentava sua oferta. Ao levar para a Aquiris o salário que lhe estava sendo oferecido, o estúdio decidiu cobrir a oferta para manter o funcionário. Um outro profissional da Aquiris também recebeu propostas semelhantes da mesma empresa, de acordo com Fabrício. “Eles estão literalmente jogando dinheiro no problema”, comenta.
Ele próprio chegou a ser sondado por outra empresa, onde acabou fazendo duas entrevistas, uma com um recrutador e outra com o CEO, mas após recuar, foi pressionado a continuar no processo, recebendo até uma proposta para trabalhar em meio período por um mês, a qual ele recusou por não se interessar pelo projeto, também um jogo play-to-earn.
Sandro Manfredini, diretor de negócios da Aquiris, afirmou que o RH da empresa não notou movimentações atípicas na companhia por conta de investidas de empresas de jogos play-to-earn.
Em grupos do Discord, desenvolvedores mencionaram que tem sido comum o contato de recrutadores (hunters) via LinkedIn para trabalhar em projetos ligados a criptogames e NFTs.
Pandemia como acelerador
Segundo Carolina Caravana, vice-presidente da Abragames (Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos), há uma conjunção de fatores que explicam o surgimento de tantas novas empresas no ramo do play-to-earn no Brasil. “A partir do começo da pandemia da Covid-19 muitas empresas que não atuavam na área de desenvolvimento de jogos começaram a se interessar [pela criação de jogos].”
Vale destacar que, em 2020, a indústria de games chamou atenção pelo seu crescimento – consequência do isolamento social e maior tempo de exposição da população a telas e dispositivos eletrônicos – enquanto outros setores eram abalados pela crise provocada pela pandemia.
Caravana também acredita que o setor brasileiro de esporte eletrônico, um dos maiores do mundo, tenha favorecido a proliferação do mercado de criptogames. “A área de esporte eletrônico também já tinha uma relação com cripto. Se você olhar internacionalmente, quem investia em eSport também estava investindo em cripto. Esse contato, desse tipo de ‘jogar por trabalho’, não é uma novidade.”
“Então são várias coisas ao mesmo tempo. O Brasil já estava em foco. A mão de obra aqui é entendida como criativa. O fuso horário é bom para desenvolvimento externo. A compra ou investimento internacional em estúdios nacionais também tem acontecido. Chegamos num momento teoricamente propício para que isso acontecesse. Não necessariamente derivado unicamente do mercado de cripto. A indústria clássica, principalmente se a gente incluir agora XR (de Extended Reality, termo guarda-chuva que abrange realidade virtual, aumentada e mista), também recebe bastante investimento internacional.”
O contexto macroeconômico do cenário pandêmico, ligado à explosão do mercado de criptoativos no Brasil, com abertura de múltiplas exchanges, também ajuda a entender a expansão súbita do play-to-earn. De acordo com o pesquisador Edemilson Paraná, a onda especulativa de criptomoeda foi intensificada por conta dos pacotes de estímulo à economia emitidos pelos governos, que, nos EUA, alcançaram US$ 5 trilhões – valor muito maior que o da crise de 2008.
“Aí você tem um excesso de oferta de liquidez e um negócio chamado em economia de armadilha da liquidez, em que você dá muito dinheiro na mão dos agentes com interesse que eles gastem para ativar a economia, mas o que eles fazem é sentar sobre o dinheiro, porque o grau de incerteza da economia é muito alto. Por que vou emprestar para gente que está desempregada, para negócio que está quebrando? O que eu vou fazer é pegar esse dinheiro e botar em cripto. Vou botar esse dinheiro em paraíso fiscal”, explica Paraná.
“Então você tem várias coisas confluindo para esse boom das cripto: um ambiente macroeconômico favorável, uma alta incerteza do ponto de vista da economia real, dos negócios reais, pois você está numa pandemia, que cria um cenário muito propício para outras formas de investimento. De outro lado, um certo recurso concentrado na mão da classe média e elite. E de um terceiro lado, daqueles que estão numa situação pior, um desespero econômico de ganhar dinheiro rápido a qualquer custo.”
De acordo com relatório do Cointrader Monitor, as exchanges brasileiras movimentaram R$ 103,5 bilhões só em bitcoin em 2021, o que corresponde a um salto de 417% na comparação com o ano anterior. Já a Receita Federal informou que contribuintes brasileiros declararam um total de R$ 200,7 bilhões em operações com criptomoedas em 2021, mais do que o dobro da soma em 2020 – valor que equivale a duas vezes e meia o total de investimentos acumulados no programa Tesouro Direto, do governo federal, ao final de 2021 (R$ 79 bilhões).
“Então você tem dois movimentos: muita liquidez, muita especulação, e ao mesmo tempo, uma grande aposta na aceleração digital de tudo”, afirma Paraná. “Mesmo para o dinheiro mais sólido, de investimento, que não seja de curto prazo e radicalmente especulativo, como costuma ser das cripto, há um grande direcionamento de recursos para plataformas, jogos, entretenimento digital, ensino à distância, comunicação online.”
No contexto brasileiro, há camadas adicionais: a da desvalorização da moeda local, o real, o alto grau de inflação e a desigualdade social acentuada durante a pandemia.
Segundo Paraná, dois fenômenos emergem desse padrão: “Você tem uma força de trabalho bastante informal e flexível que se precarizou ainda mais da pandemia para cá. Ela está relativamente incluída digitalmente e vem desesperadamente buscando alternativas de remuneração nesse espaço”.
Um dos argumentos mais comuns usados em defesa ao modelos de scholarships dos jogos play-to-earn é o de que eles promovem alternativas de remuneração, sem o risco que normalmente envolve o investimento em NFTs e itens tokenizados.
“Então isso é um processo que não acontece só no mundo dos jogos: você tem coisas como as fazendas de clique, o Amazon Mechanical Turk e o pessoal que fica classificando conteúdo impróprio no Facebook, inclusive com efeitos para saúde mental equivalentes a pessoas que vivem experiências de zona de guerra. E os brasileiros muitas vezes estão na linha de frente da força de trabalho que ocupam essas tarefas”, explica Paraná.
“A moeda desvalorizada nesse contexto derruba ainda mais a remuneração dessa forma de trabalho em termos relativos. Então agora está muito atrativo contratar brasileiros. E não é só para esses cargos precários. Os brasileiros estão sendo muito contratados em vários lugares. Um analista virando sênior que ganha US$ 4 mil nos EUA não é muita coisa. Mas US$ 4 mil dólares para um brasileiro, o cara ganha R$ 20 mil. Nenhuma empresa de TI por aqui consegue pagar isso em média pros seus analistas de TI sênior.”
Pergunto à Caravana, vice-presidente da Abragames, se a multiplicação de empresas de criptogames no Brasil, especialmente com investimento estrangeiro, que pode atrair profissionais com altas ofertas de salário, representa um movimento predatório para a indústria de games local. Cautelosa na resposta, ela afirma que “há investimentos que podem ser predatórios” e que “isso é uma coisa que a gente se preocupa.”
“Pokémon Go, Clash Royale geraram grandes mudanças na indústria mobile. E vários outros acontecimentos vem trazendo grandes modificações. Essa é mais uma. Essa corrida, esse grande interesse, daqui um tempo ele vai diminuir, mas o interesse em jogos não vai. Então esse pessoal que está investindo de forma agressiva, daqui a pouco isso não vai ser sustentável, então esse movimento tende a diminuir”, opina Caravana.
“Acho que pode estar existindo um movimento predatório, mas não só por conta de cripto. E agora o debate se essas questões relacionadas ao porquê, o como, das cripto serem ruins para o desenvolvimento ou para os jogos em si, esse é um debate que a comunidade precisa fazer. E a associação [abragames] tem que estar acompanhando para poder ajudar as empresas a não caírem em furadas e ao mesmo tempo entender o que tem de bom acontecendo em relação a isso.”
Apesar das discordâncias sobre o tema, em geral, parece existir um consenso: de que o que estamos testemunhando é uma corrida ao ouro. As consequências desse fenômeno, contudo, ainda estão abertas à especulação, com uns acreditando em uma bolha especulativa e outros em um futuro inescapável. “Uma das palestras que eu vi na GDC mais interessante sobre blockchain tocou nisso de forma bem clara: os jogos que temos até agora são aqueles que puderam ser feitos de seis meses a um ano. Agora nós vamos começar a ver jogos mais parrudos”, opina Steinberg, do BIG.
“A tecnologia emergiu, as possibilidades se encaixaram, e surgiram os jogos que poderiam aproveitar de uma forma bastante predatória e da maneira mais rápida possível. Não deu nem um ano esse boom de cripto. Então os jogos que estão na praça são os que foram feitos rapidamente. Eu particularmente tenho vários questionamentos aos modelos estabelecidos de negócio, assim como tenho em relação a jogos que se aproveitam da psicologia humana ou para prosperar, ou aos jogos tipo gacha. Tem uma série de mecanismos que eu não considero muito bons. Eu vou vetar a existência disso no BIG? Não. Está aberto à discussão. Mas os jogos do BIG Festival continuam sendo avaliados como sempre foram, nos critérios de linguagem, inovação, arte e gameplay. E as discussões que vão ser colocadas de blockchain vão ser nessa linha. É ruim você poder vender seu personagem em que você investiu 5 mil horas da sua vida? Porque isso já é feito, mas de forma pirata. Não oficial. É ruim essa possibilidade? Eu não considero particularmente ruim.”
Paraná levanta a possibilidade dessa corrida do ouro repetir a bolha especulativa da internet, que ocorreu entre 1994 e 2000, e que resultou no colapso da bolsa de valores Nasdaq e em uma onda de falências de empresas de tecnologia.
“Estamos vendo esquemas que escalam muito rápido. É espantoso. Você vê uma empresa que nunca existiu e de repente ela está com o Matt Daemon fazendo uma campanha publicitária. Isso lembra muito o ambiente da bolha das ‘pontocom’ em que você tinha empresas que saíram do nada com negócios bilionários e depois você teve quebras catastróficas. Então é recorrente, acontece”, explica Paraná.
“Com o bitcoin e as cripto, por consequência, houve uma subida brutal e agora uma queda, mas ainda assim um patamar alto. Isso leva a uma gold rush, uma corrida pelo ouro. É ainda um ambiente de faroeste financeiro. Um ambiente com muitas pessoas dispostas a mobilizar muito dinheiro, muito rápido. E você normalmente age nessa subjetividade financeirizada de alta velocidade, alta intensidade emotiva, em que tem que saber a hora de entrar e sair. E entra nesse frenesi, nessa dança das cadeiras e você tem certeza que quando a música parar quem vai sentar na cadeira é você, e quem vai ficar de pé é o outro. Não é que as pessoas não saibam. As pessoas sabem que é um esquema especulativo, mas elas acham que elas vão ganhar, que vão ser os espertões que vão se dar bem.”
O desenvolvedor Venturelli acredita que tudo não se passa de um movimento passageiro, que será lembrado no futuro como um momento constrangedor da indústria de games. “É horrível, é contra tudo o que eu acredito, é prejudicial à nossa indústria, à nossa mídia que a gente ama. Acho que vai passar, não só internacionalmente. Mas acredito também que as circunstâncias que a gente vive hoje vão passar. Esse é talvez o pior momento que a indústria brasileira [independente] já teve nos últimos 10 anos, talvez. Em termos de novos estúdios, pessoas, ideias, projetos. Nossa produção nacional encolheu ou ficou a mesma coisa nos últimos três anos. E parte do resultado tá aí: o BIG, um espaço que está aberto para abutres. E os abutres estão vindo. É lamentável, mas eu tenho esperança de que vá melhorar.”