Kriegsspiel: como os videogames mantêm vivo um jogo de guerra do século XVIII
Para entender por que armas parecem indissociáveis de videogames, é preciso olhar para o passado e traçar as conexões entre os jogos, a guerra e o militarismo. Nesta série de quatro episódios, buscamos na história respostas para entender porque mecânicas de tiro e combate são tão prevalentes em videogames. Passaremos pelos primórdios da humanidade, pela criação do wargaming, pela Guerra Fria, pelo nascimento dos videogames até chegarmos aos dias de hoje.
No primeiro episódio, tratamos como jogos são uma manifestação do nosso instinto lúdico que nos permitem pôr em prática habilidades úteis à nossa sobrevivência. E se guerra pode ser entendida como sobrevivência em larga escala, é compreensível que historicamente os jogos sempre estiveram associados à ideia de guerra, do Go ao Xadrez. Eu recomendo que você o assista ou leia antes de acompanhar esse episódio.
No episódio 2, Kriegsspiel: como os videogames mantêm vivo um jogo de guerra do século XVIII
Embora esteja disponível também na forma de texto, recomendamos que você assista o vídeo-ensaio, que traz um amplo material histórico, incluindo documentos, pinturas e gravuras:
Uma das maiores influências para os videogames precede a invenção do computador digital em quase dois séculos. Em 1780, no Reino da Prússia, o entomologista Johan Hellwig, professor da Academia Militar de Braunschweig, cria o Kriegsspiel, literalmente “jogo de guerra” em alemão. Sua ideia é usar o jogo para treinar jovens nobres destinados ao serviço militar.
Tomando como base o Xadrez, ele atualiza suas regras para melhor refletir a ciência militar do período, especialmente o comportamento da infantaria, cavalaria, artilharia e unidades de suporte. O tabuleiro era composto por 1617 quadrados,que representavam diferentes tipos de terreno. Em vez de capturar o rei, era preciso ocupar a fortaleza inimiga. Em terrenos normais, infantaria poderia se mover até no máximo 8 casas por turno, cavaleiros até 12 e cavalaria leve até 16, simulando a velocidade no mundo real. Rios só poderiam ser atravessados com uma unidade especial de barco. O jogador só podia mover uma peça por turno ou um grupo de peças se elas estivessem organizadas em um retângulo, como uma tropa. Capturas eram feitas igual no Xadrez, mas infantaria e artilharia poderiam atirar nas peças inimigas até no máximo dois ou três painéis de distância. As peças tinham orientação: uma peça poderia apenas atirar em uma peça inimiga se ela estivesse na direção de sua face.
A essa altura talvez você já tenha lembrado de alguns jogos eletrônicos, como Fire Emblem, Age of Empires ou Civilization, que herdaram do Kriegsspiel muitos dos seus conceitos. Mas sua influência aos videogames vai muito além do gênero de estratégia, como veremos a seguir.
Décadas após sua criação, no começo do século XIX, o barão George von Reisswitz, insatisfeito com o sistema de grade do jogo de Hellwig, que tornava irrealista a maneira como as unidades se moviam pelo campo, começou a criar sua própria versão do Kriegsspiel.
Repare que aqui a gente também já tem outras características bem marcantes da linguagem dos videogames: a tendência do jogo ao realismo, guiada por uma ideia de simulação fidedigna à realidade, e a derivação, que dá origem a novas versões do mesmo jogo, só mais incrementadas.
Reisswitz então substitui o tabuleiro por uma mesa coberta por areia úmida para simular um campo irregular, com montanhas e vales. Os príncipes Guilherme e Frederico da Prússia foram apresentados ao jogo por Reisswitz em 1810 e o recomendam ao seu pai, o rei Frederico Guilherme III. Para impressioná-lo, ele dispensa a areia úmida e constrói um gabinete de madeira com um tabuleiro que se desdobra, criando uma superfície de jogo de 1,8 m2.
O campo era composto por ladrilhos modulares feitos de porcelana com pinturas em baixo-relevo, que representavam os diferentes tipos de terreno. Assim, as peças poderiam ser rearranjadas a cada partida, dando origem a diferentes situações. Quando não estava sendo jogado, elas podiam ser guardadas nas gavetas laterais. As tropas eram representadas por pequenos blocos de porcelana, que podiam se movimentar pelo campo livremente, por meio do uso de réguas.
O presente foi dado em 1812 à família real, que ficou bastante impressionada com o trabalho de Reisswitz e passou a jogá-lo frequentemente. Nesse período, Reisswitz se ocupa com as Guerras Napoleônicas e acaba deixando seu Kriegsspiel de lado.
Mas em 1824 seu filho Georg Heinrich Reisswitz, um oficial do exército prussiano, dá continuidade ao jogo do pai, desenvolvendo-o com a ajuda de outros oficiais e do príncipe Guilherme, novamente tendo como base a ciência militar do período. E se a primeira versão de Kriegsspiel já parece respingar nos jogos eletrônicos, essa nova versão pode ser considerada uma das fundações do videogame.
Eles adicionam ao jogo os conceitos de hitpoints e dano variável, com ataques determinados pelo uso de dados. Em um novo exemplo de como a tecnologia impulsiona os jogos ao realismo, mapas topográficos de grande escala, uma novidade naquele período, foram usados no jogo, oferecendo representações de terreno naturais e simulações de batalhas em locações reais. Uma espécie de árbitro também foi adicionado, o qual recebia e interpretava as ordens dadas às tropas e as movia pelo mapa, rolava os dados, computava os efeitos e removia unidades eliminadas do tabuleiro.
Se isso faz você pensar na função do mestre de partidas de RPG, não é por coincidência. O Kriegsspiel é a origem desse conceito e, na verdade, de todo o wargaming, que é o que dá origem ao RPG aproximadamente 150 anos depois. Antes de criar o Dungeons & Dragons, Gary Gygax foi um grande entusiasta de wargaming. Mas voltemos ao Kriegsspiel de Reisswitz filho.
Outra inovação foi a inclusão da névoa de guerra (também conhecida como fog of war), simulada pelo árbitro a partir do gerenciamento de informações fechadas e abertas. Ele mantinha um registro mental das peças e as colocava no mapa apenas quando entravam no campo de visão das equipes.
Essa versão de Kriegsspiel é também possivelmente a origem da convenção das cores azul e vermelha para determinar equipes em disputa. Como o exército prussiano havia então adotado uniformes na cor “azul da Prússia”, inventada em Berlim em 1750, a tonalidade foi usada para representar as tropas do exército prussiano e o vermelho, as tropas dos países inimigos.
Em 1824 Reisswitz filho apresenta seu Kriegsspiel ao rei e generais do exército, convencendo-os usar o jogo como ferramenta de treinamento ao corpo de oficiais. Na ocasião, Friedrich von Muffling, general do exército prussiano, declara: “este não é um tipo comum de jogo, é a educação para a guerra. Eu devo e vou recomendá-lo calorosamente ao exército.”
Paralelamente, ele cria uma oficina que o permite produzir o Kriegsspiel em massa e vendê-lo, fazendo do jogo um enorme sucesso entre a população e um símbolo cultural. Não à toa, até hoje a Alemanha é conhecida por sua tradição de jogos de tabuleiro.
Em 1870, o Reino da Prússia tem uma vitória decisiva na guerra Franco-Prussiana, derrubando Napoleão III do poder e causando grandes transformações no Império Francês. A conquista da Prússia fez com que o mundo conhecesse sua tradição em jogos de guerra, aos quais, inclusive, muitos atribuíam sua vitória. Rapidamente, o jogo se espalha, primeiramente para o resto da Europa e em seguida para a América. Seria o início de uma era de guerras moldadas por simulações.
No próximo episódio, o governo dos EUA eleva o wargaming a um instrumento inseparável da defesa e inteligência nacional, impulsionando a criação dos primeiros computadores digitais e, consequentemente, dos videogames.