A invisível indústria de video games do Irã

 
 

Um dos jogos eletrônicos mais conhecidos da história se passa no antigo Império da Pérsia, onde hoje se encontra o Irã. Desde o lançamento de Prince of Persia, em 1989, a série ganhou inúmeras continuações e até mesmo uma adaptação cinematográfica. Nada disso, contudo, foi produzido no país. Como Prince of Persia, a maioria dos jogos ou filmes que temos acesso no Brasil e que retratam o Irã e seu passado passam pelo filtro ocidental. E sabendo das más relações entre o Irã e os EUA, um enorme exportador cultural, não é de se espantar que a imagem que temos do país a partir da produção do ocidente é bastante estereotipada e praticamente limitada a conflitos militares e terrorismo.

A verdade, contudo, é bem diferente. O Irã carrega todo o legado da civilização persa, um dos berços da humanidade. A despeito da censura imposta pelo atual governo teocrático, em vigência desde a Revolução Iraniana, em 1979, o Irã tem uma população altamente educada e uma produção cultural efervescente, bem distante da caricatura bárbara e exótica pintada pelo ocidente. A longa história de domínio das artes do Irã se encontra na literatura, na arquitetura, na pintura, na caligrafia, na dança e na música. Na modernidade, essa tradição se expressa especialmente no cinema iraniano, premiado e celebrado mundialmente em filmes como Filhos do Paraíso, O Apartamento, Persépolis, originalmente um quadrinho, e tantos outros.

Essa riqueza cultural tem se refletido há mais de uma década na produção de videogames, que o próprio governo reconhece como um importante vetor da cultura contemporânea, em especial para as novas gerações. Em 2007 foi criada a Fundação de Videogames e Computadores do Irã, uma empresa estatal vinculada ao Ministério da Cultura e Orientação Islâmica que promove, fomenta e controla a indústria de jogos eletrônicos no país. Desde então, foram produzidos centenas de títulos, muitos deles financiados pelo próprio governo. Isso faz do Irã o maior produtor de videogames do Oriente Médio, com uma indústria que, à primeira vista, parece mais organizada e experiente que a indústria brasileira.

A Fundação de Videogames e Computadores do Irã fomenta a indústria de videogames local com conferências, festivais, competições e premiações. Na foto, a 7ª Edição do Festival de Videogames de Teerã

A Fundação de Videogames e Computadores do Irã fomenta a indústria de videogames local com conferências, festivais, competições e premiações. Na foto, a 7ª Edição do Festival de Videogames de Teerã

A oitava edição do anual Festival de Vídeo Games de Teerã, que aconteceu em 2019, contou com 146 jogos inscritos, todos desenvolvidos localmente. Desses, 124 foram para Android, 19 para PC e 3 para iOS, o que nos ajuda a entender a proporção de jogos iranianos em cada plataforma. Devido às sanções internacionais, a produção de jogos para consoles não é tão comum.

Além deste festival, que premia os vencedores com milhões de dólares, a Fundação de Videogames e Computadores do Irã também organiza eventos de jogos sérios e educativos, conferências abertas a empresas internacionais, hackathons e competições, além de já ter levado comissões iranianas para feiras na Europa, como a Gamescom.

Mas por que a gente conhece tão pouco dessa produção tão vasta? Por que aparentemente esses jogos não chegam até nós? Para entender melhor esse cenário, eu conversei com Yasaman Farizan, uma desenvolvedora de jogos iraniana que mora atualmente em Colônia, na Alemanha, onde estuda programação de videogames. Uma das coisas que eu queria saber da Yasaman era a relação entre o desenvolvimento de jogos e o governo do Irã.

“Há essa comunidade de desenvolvimento de jogos no Irã e eles às vezes financiam o desenvolvimento de alguns jogos, mas há muitas regras para que esses jogos sejam aceitos e eles ficam com uma parte dos lucros, então não é algo que a maioria dos desenvolvedores está interessada”, explica. “E geralmente quando você obtém esse tipo de financiamento do governo, eles estão esperando alguns conteúdos ou mudanças no jogo que talvez os desenvolvedores não queiram. Então não é algo que muitas pessoas buscam quando querem aporte para desenvolver um jogo.”

Há diversos jogos iranianos desenvolvidos em resposta a produções ocidentais. O jogo-documentário Irã 57 (acima), criado para contrapor a produção norte-americana 1979 Revolution: Black Friday, conta a história da Revolução Iraniana de um ponto de v…

Há diversos jogos iranianos desenvolvidos em resposta a produções ocidentais. O jogo-documentário Irã 57 (acima), criado para contrapor a produção norte-americana 1979 Revolution: Black Friday, conta a história da Revolução Iraniana de um ponto de vista favorável ao atual governo teocrático, vigente desde o período. Já o jogo americano, desenvolvido por iranianos, aborda as diferentes pautas que participaram das revoltas populares, incluindo feministas, liberais e marxistas.

Pergunto se, com isso, o governo está interessado em promover os jogos compatíveis com sua visão. “Sim, os jogos alinhados com sua ideologia ou o que eles quiserem propagar”.

O regime do líder supremo Ali Khamenei, que alega ser descendente do profeta Maomé, entende o videogame não apenas como uma forma de propagar os valores da República Islâmica do Irã, mas também como uma resposta à ameaça cultural que vem do ocidente, que normalmente pinta o Irã como um vilão. Isso se dá tanto na censura de jogos do exterior que demonizam o Irã e o islamismo quanto na promoção da cena de desenvolvimento local — desde que sua produção esteja de acordo com as visões do governo e reflita os valores islâmicos.

E não são poucos os títulos que exploram mitos persas, tramas políticas da história recente do Irã e conflitos armados, sempre de um ponto de vista favorável ao governo e à Guarda Revolucionária Iraniana. Os títulos de guerra em especial assumidamente evocam um sentimento de resistência contra os EUA e Israel, retratando-os como inimigos e enaltecendo heróis nacionais — mas até aí, nada muito diferente da maneira como os rivais dos EUA são retratados em jogos como America’s Army, Call of Duty e Battlefield, que inclusive traz uma fase de invasão militar a Teerã, a capital do Irã.

Mas e quando essa produção escapa dessas normas?

No começo de janeiro de 2020, um desenvolvedor de Children of Morta, jogo desenvolvido pela Dead Mage, um premiado estúdio de origem iraniana, afirmou via Twitter ter sido convocado a um tribunal no Irã por causa de uma queixa de que seu jogo teria dança, ausência de hijab (o véu usado por mulheres em países de tradições muçulmanas), falta de louvor a Deus, uso de magias para combater demônios e funeral alheio às práticas islâmicas.

Perguntei à Yasaman se isso é comum no Irã.

“Se eles perceberem que você fez o jogo, eles podem ficar mais exigentes. Mas não é fácil para o governo notar esses jogos e seus conteúdos. Eles podem não ter jogado o jogo. Podem ter visto um vídeo ou algo assim. Se isso acontece com você é normalmente por que uma pessoa te processou por esse conteúdo, o que pode te colocar em apuros. Eu não tenho certeza, não tenho informações sobre o que pode acontecer no julgamento e o resultado de tudo isso. Mas é algo que desenvolvedores podem esperar e eles tentam se manter na linha quando fazem jogos que eles sabem que serão vistos. Há muitos jogos que possuem hijab e outros que não possuem hijab. Eu não sei as questões legais, mas normalmente não é permitido.”

Um desenvolvedor de Children of Morta afirmou ter sido convocado a um tribunal em janeiro de 2020 no Irã por causa de uma queixa de que seu jogo teria uma série de práticas incompatíveis com as leis islâmicas, incluindo dança em locais públicos e au…

Um desenvolvedor de Children of Morta afirmou ter sido convocado a um tribunal em janeiro de 2020 no Irã por causa de uma queixa de que seu jogo teria uma série de práticas incompatíveis com as leis islâmicas, incluindo dança em locais públicos e ausência de hijab (o véu usado por mulheres em países de tradições muçulmanas).

Segundo a publicadora de Children of Morta, a polonesa 11-Bit Studios, em resposta ao site TechRaptor, “após breves explicações o caso foi encerrado e afetou apenas o mercado iraniano e o contexto local”. Desde então, o assunto parece ter sido esquecido.

Mesmo que, de uma forma ou outra, desenvolvedores consigam evitar o filtro ideológico do governo, eles acabam se esbarrando em um outro problema. Desde a Revolução Iraniana, os EUA impõem sanções contra o Irã, a fim de prejudicar sua economia e influenciar sua política. Na década de 2000, essas sanções foram intensificadas depois que o Irã se recusou a suspender seu programa de enriquecimento de urânio, que governos ocidentais temiam ser destinado à produção de armas nucleares. Embora temporariamente suspendidas por Barack Obama após um acordo nuclear com o Irã, o atual presidente do EUA, Donald Trump, retomou e intensificou as sanções, isolando o Irã do resto do mundo. 

“As sanções realmente nos afetam”, explica Yasaman. “Por exemplo, há muitas coisas que são restritas a nós. Coisas simples, como serviços de desenvolvimento do Google, que são coisas que a maioria das pessoas consideram garantidas, são limitadas a nós. Não temos acesso a não ser que usemos VPNs ou proxies. Mas se em algum momento eles perceberem que você é do Irã, eles vão banir sua conta. Isso é algo que aconteceu a nós, quando estávamos usando o serviço Unity Ads. Eu acho que foi há uns dois meses atrás que cortaram nosso acesso ao Slack e Github do nada, sem qualquer notificação antecipada para que as pessoas pudessem fazer uma cópia do seu projeto ou algo assim. Também acontece com a loja de aplicativos da Apple. Eles removem qualquer app ou jogo iraniano apenas por que são do Irã. Então não é algo que conseguimos facilmente evitar e tem ficado cada vez pior.”

Outra coisa que muita gente não sabe sobre o Irã é que nós não temos acesso a bancos globais ou mesmo PayPal, então transações internacionais são muito difíceis para nós.

“No Irã há alguns servidores de jogos que estão fechando. Por exemplo, você não pode jogar o novo Call of Duty. Nós não conseguimos usar kits de desenvolvimento no Irã. Se eles perceberem que você está usando um no Irã ele ‘brickaria’. Outra coisa que muita gente não sabe sobre o Irã é que nós não temos acesso a bancos globais ou mesmo PayPal, então transações internacionais são muito difíceis para nós.”

Mesmo que desenvolvedores tentem recorrer ao apoio de companhias estrangeiras, como forma de driblar as restrições tecnológicas e o isolamento, eles acabam se deparando com outros problemas:

“A maioria das publishers internacionais não está muito disposta a trabalhar com iranianos. Na maioria das vezes quando advogados começam a perceber que a companhia é iraniana, eles apenas quebram o contrato. Sabem que não vai acontecer porque vai haver alguma restrição para que trabalhem com as leis americanas. Então é muito difícil para desenvolvedores sequer encontrarem uma publisher. Normalmente nessas companhias maiores usam pessoas de fora do Irã, por exemplo algum amigo que mora no exterior que tem uma companhia que pode assinar um contrato por eles. Mas eu nem sei se é legal dizer isso porque nem sempre é algo que se faz legalmente. Sei que muitas vezes eles também não anunciam publicamente que são desenvolvedores iranianos por que mesmo isso pode causar problema em algum momento.”

Curiosamente, embora as sanções internacionais sejam uma forma de bloquear a economia do Irã, ela acaba tendo um efeito positivo para algumas companhias locais, que não precisam competir com as gigantes multinacionais estrangeiras, ausentes no país. Como o Google Play, a loja de aplicativos oficial do Android, não existe por lá, empresários locais fundaram o Cafe Bazaar, que tem mais de 40 milhões de usuários, praticamente a metade da população do Irã. Sem concorrência e com quase 60 milhões de aparelhos Android só no Irã, eles controlam 97% do mercado de venda de aplicativos e jogos para a plataforma Android. O Cafe Bazaar é, inclusive, uma das razões para que a produção local de jogos para o Android tenha sido tão impulsionada.

Engare é um quebra-cabeça sobre os complexos padrões matemáticos que compõem as mesquitas persas — e um dos poucos assumidamente iranianos a chegar ao ocidente. Para evitar transtornos e problemas legais, é comum que desenvolvedores locais não assum…

Engare é um quebra-cabeça sobre os complexos padrões matemáticos que compõem as mesquitas persas — e um dos poucos assumidamente iranianos a chegar ao ocidente. Para evitar transtornos e problemas legais, é comum que desenvolvedores locais não assumam suas origens em lançamentos internacionais.

Mas talvez esse seja o único efeito colateral positivo das sanções. A situação em geral é tão difícil para desenvolvedores que para muitos deles, o anonimato é a única forma de driblar as exigências ideológicas do governo e garantir um contrato internacional com algumas publishers. Entendi isso na prática quando perguntei a Yasaman se ela poderia me dizer quais são os maiores estúdios iranianos. “Eu não tenho certeza se isso os colocaria em apuros ou não.”

Pergunto se o anonimato é algo importante para desenvolvedores iranianos?

“Sim. Com todas essas regras... Não sei se eles estão trabalhando atualmente com companhias internacionais. Não sei quais são suas abordagens para conseguirem essas informações. Então eu preferia não dizer. Eu acho que há acordos que pedem a eles que não falem abertamente que são do Irã, pelo menos não oficialmente. Então eu tento não quebrar as regras ou causar problemas a eles.”

E, segundo Yasaman, essa é uma das razões para que não tenhamos tanto acesso a jogos iranianos — ou ao menos, achamos não ter.

Eu amaria e teria muito orgulho em dizer ‘esse jogo e esse outro são iranianos’ mas não acho que é apropriado porque pode causar problemas aos desenvolvedores.

“Você tem acesso a alguns deles mas muitas vezes você não sabe que é iraniano. Eu amaria e teria muito orgulho em dizer “esse jogo e esse outro aqui são iranianos” mas como eu disse, não acho que é apropriado porque pode causar problemas aos desenvolvedores.”

O Índice de Liberdade Humana dá ao Irã a posição 154 dos 162 países avaliados. Isso o coloca entre os 10 países do mundo que mais censuram, controlam, perseguem e restringem as liberdades de sua população. E contra todas as probabilidades, é neste ambiente de privação de liberdade e isolamento econômico que floresceu a indústria de videogames do Irã — uma que, em parte, tenta nadar contra a maré em busca de visibilidade, reconhecimento e emancipação.

“Eu apenas espero o melhor para o Irã”, declara Yasaman. “No momento não é fácil ser iraniano. Eu sei que há tantas pessoas talentosas e motivadas que amam fazer video games. A maioria delas estão fazendo jogos por pura paixão, elas não estão ganhando muito com isso. Eu só espero que tudo fique melhor para elas e que possamos nos abrir para a comunidade internacional e ganhar mais visibilidade nesse meio.”