Como a história da Sierra nos ajuda a entender a marginalização das mulheres nos games
Em 18 de março de 2020 a GDC (Game Developers Conference), uma das mais antigas entidades em atividade da indústria dos videogames, ofereceu seu tradicional prêmio de pioneirismo a Roberta Williams, hoje com 67 anos. Embora o evento tenha sido adiado em decorrência do novo coronavírus, as premiações Independent Games Festival & Game Developers Choice Awards aconteceram normalmente, na forma de uma montagem em vídeo — e com uma gravação de Roberta agradecendo pela honraria.
Aposentada com seu marido Ken Williams há mais de 20 anos, a co-fundadora da Sierra Entertainment, que um dia já foi a maior publicadora de softwares de entretenimento para computadores do mundo, é constantemente lembrada por seu trabalho como designer e escritora de jogos de grande sucesso no passado, como King’s Quest e Phantasmagoria.
Não é a primeira vez que Roberta é consagrada. Em 2014, ela e seu marido foram reconhecidos e homenageados na premiação The Game Awards por suas contribuições à indústria de videogames.
Essas frequentes lembranças a Roberta acontecem em um momento em que a indústria de videogames ativamente luta para se desvencilhar da fama de tóxica e hostil a mulheres e minorias. É como se as memórias da Sierra pudessem aliviar o fato de que, embora a representatividade feminina esteja melhorando nos jogos, acompanhando as transformações da sociedade, pouca coisa mudou no ambiente de trabalho.
Há um bom motivo para isso: nunca houve nos videogames uma companhia tão grande e bem sucedida com tantas figuras femininas ocupando cargos de liderança criativa como a Sierra. Séries inteiras com múltiplos jogos foram construídas por mulheres no papel de diretoras, designers, escritoras e produtoras, como Gabriel Knight (de Jane Jensen), Quest for Glory (de Lori Ann Cole), Shivers (de Marcia Bales) e Conquests (de Christy Marx, que também criou a série animada Jem e as Hologramas). Continuações e projetos arriscados eram confiados a mulheres como Lorelei Shannon, que cuidou de Phantasmagoria: A Puzzle of Flesh e Tammy Dargan, responsável pelos últimos jogos da série Police Quest.
No topo dessa rede de talentos está a própria Roberta, que ao longo de seus 18 anos de atividade escreveu e/ou projetou aproximadamente 20 jogos, muitos dos quais ajudaram a consolidar e impulsionar a linguagem dos videogames, especialmente no aspecto narrativo.
Essa história pode parecer um sonho utópico, especialmente quando paramos para observar o cenário de desigualdade tão presente na indústria dos jogos. Basta olhar para fotos que estúdios costumam postar de suas equipes orgulhosas quando uma meta é batida ou consultar levantamentos, como o State of the Gaming Industry, feito pela GDC, cuja última edição, de 2019, aponta que quase 80% da indústria é composta por homens.
Ainda que tenham sido exceções à regra, as trajetórias da Sierra e da Roberta Williams nos ajudam a entender por que nem sempre foi assim e como elas não foram as únicas. E é por isso que elas são tão valiosas neste momento em que pessoas buscam referências e inspirações, seja para encontrar um senso de pertencimento em um meio que foi tão hipermasculinizado (com todas as consequências desse processo), seja para obter um pouco de esperança por mudanças concretas.
Game design doméstico
Ken e Roberta Williams se casaram em 1972, com 18 e 19 anos, respectivamente. Até o final da década, cumpriam os papéis tradicionais que a sociedade da época esperava desse tipo de contrato: enquanto ele trabalhava como um proeminente programador, saltando de emprego em emprego em companhias de tecnologia, dedicado em trazer sustento à sua família, ela não parecia incomodada em viver em função do marido, cuidando dos dois filhos e mantendo em ordem a casa na árida Simi Valley, na Califórnia.
As coisas mudam quando Ken traz para casa um computador, introduzindo sua esposa à ficção interativa seminal Colossal Cave Adventure, de Will Crowther. Aos 26 anos, Roberta, que não se importava muito com tecnologia e admitidamente “mal conseguia fazer uma chamada telefônica”, se vê obcecada com o jogo, a ponto de ignorar as tarefas domésticas e seu filho de oito meses. De tão inspirada pelo seu novo hobby e vendo que não havia títulos similares no mercado, propõe a Ken a criação de seu próprio jogo, um mistério de assassinato aos moldes de Agatha Christie — literatura era uma de suas paixões. Diferentemente dos jogos disponíveis, porém, ela queria o seu não apenas com texto, mas também com imagens interativas.
Eventualmente convencido, Ken concorda em programar o jogo, mas ainda não sabia o que fazer com relação aos gráficos idealizados por Roberta. No final dos anos 70, computadores pessoais ainda estavam sendo introduzidos no mercado e a maior parte deles mal era capaz de reproduzir cores, tampouco imagens em pixels. Ele viu no Apple II, especificamente em seu modo hi-res, que mesclava imagem e texto, a possibilidade de pôr em prática as ideias de Roberta. Mas se uma única imagem em bitmap poderia ocupar todo o espaço disponível em um disquete, como um jogo poderia exibir dezenas delas? Para piorar, não existiam boas ferramentas de desenho disponíveis — mouse sequer era uma realidade.
A solução foi um VersaWriter, uma espécie de tablet primitiva usada para digitalizar diagramas, desenhos técnicos e plantas baixas. O usuário poderia colocar seu esboço feito à mão em uma camada e, com o braço mecânico acoplado, digitalizar o desenho formando linhas — o que Roberta fez pacientemente, com o dispositivo apoiado na mesa da cozinha. Ken então cria um software que lê o desenho não como bitmap, mas como um conjunto de vetores, fazendo com que as imagens coubessem em um único disco. Após projetar o sistema de parser (uma espécie de intérprete comum a ficções interativas, capaz de reconhecer frases simples com a combinação de verbo e substantivo), Roberta só precisou alimentar o programa com sua história e imagens.
Nascia então Mystery House, considerado o primeiro adventure gráfico e o precursor do gênero como um todo — muito embora Roberta viesse a detestar o termo, provavelmente herdado do próprio Colossal Cave Adventure. “É tão arcaico. Eu realmente penso neles como histórias interativas”, disse em um artigo de 1993 da USA Today, quando já era considerada pela imprensa a “rainha dos adventures”. Curiosamente, Mystery House também é um dos primeiros jogos eletrônicos a ter, não por coincidência, um ambiente doméstico como cenário — o que viria a se repetir em jogos futuros, como The Colonel’s Bequest e Phantasmagoria.
Seu lançamento aconteceu em maio de 1980 de forma independente, por meio da companhia que Ken havia fundado alguns meses antes, a On-Line Systems. Roberta criou um cartaz usando letras e números recortados de revistas, no melhor estilo serial killer, e fez fotocópias, que foram divulgadas nas seções de publicidade das revistas especializadas da época. O primeiro lote de disquetes embalados em saquinhos Ziploc foi vendido em lojas locais de Simi Valley e Los Angeles. John, irmão de Ken, fez o mesmo do outro lado do país, em Illinois, onde morava.
Três meses depois, Roberta e Ken já haviam acumulado US$ 61 mil das vendas de Mystery House, e novos pedidos não paravam de lotar sua caixa de correios — um sucesso inesperado! O casal decide então realizar seu sonho: Ken abandona seu emprego e juntos se mudam para Oakhurst, uma pequena comunidade rural na Califórnia envolta pela Floresta Nacional de Sierra, parte do exuberante Parque Nacional de Yosemite. Inspirados pela imponência do Half Dome, a famosa cúpula de granito ao extremo leste do vale de Yosemite, Roberta e Ken adicionam Sierra ao nome da companhia. O pico vira seu icônico logotipo.
Essa cidadezinha pacata de menos de 3 mil habitantes se torna a sede da Sierra On-Line, que em 1983 já contava com 130 funcionários e bancava equipes de dez ou mais indivíduos para auxiliar Roberta, a principal estrela da casa, na criação dos jogos (algo equivalente ao que a indústria considera uma produção “triplo A” atualmente), enquanto Ken cuidava da administração e dos negócios da empresa.
Embora pareça um disparate estabelecer uma companhia de software em um lugar tão remoto, a três horas de distância do centro de São Francisco em uma viagem de carro, estamos falando de uma companhia que transformou uma dona de casa em uma célebre game designer. A filosofia doméstica por trás de Mystery House acabou servindo de base para toda a cultura da Sierra: ferramentas eram desenvolvidas para que pessoas comuns como Roberta, e não nerds ou engenheiros, pudessem criar seus próprios jogos. Isso os levou a contratarem moradores da região — não é como se eles tivessem tido muitas outras opções: garimpeiros, balconistas de lojas, hippies, decoradores, professores, músicos e toda sorte de gente. Eram homens e mulheres com diferentes backgrounds, histórias, gostos e experiências, que receberam da Sierra liberdade para criar e experimentar em uma linguagem totalmente nova, que ninguém entendia muito bem. Os que mais se destacavam acabavam sendo incentivados por Roberta a criarem e dirigirem seus próprios jogos. Nesse modelo autoral, democrático e humano, cada jogo tinha a cara (literalmente, muitas vezes estampada na caixa) e a voz de alguém. O modelo de Mystery House havia evoluído e virado o modelo Sierra.
Ao longo da década de 1980, a Sierra se torna a maior empregadora da pequena cidade. Como descreve Laine Nooney, historiadora que estuda a chegada dos computadores aos ambientes domésticos (e por consequência, a Sierra), “até o começo dos anos 90, cada caixa, cada disco, cada embalagem era impresso, formatado e embrulhado em Oakhurst pelas mãos do auto-declarado ‘povo da montanha’”.
Conforme seus jogos foram ficando mais complexos e seu prestígio foi aumentando, eles precisaram contratar artistas e programadores especializados, que eram convencidos a se mudar para a região, como Christy Marx (que trabalhou como designer em Conquests of Camelot e Conquests of Longbow) e seu marido ilustrador. Nenhum dos dois havia tido qualquer contato com videogames até trabalharem na Sierra. “Tudo era novo, experimental, sem categorias estabelecidas e o tipo de especialização que temos hoje”, conta Christy nesta entrevista ao GOG. “Até ser uma designer não era uma função gravada em pedra. Não havia regras e leis para ser uma designer”.
Talvez sem perceber, os Williams fizeram com que a Sierra tivesse um importante papel para a história e economia local, como declarado no centenário de 2012 de Oakhurst (à direita).
Um meio diversificado
Com base nos cartões de registro que vinham no pacote de King’s Quest IV (lançado originalmente em 1988 e o primeiro da série a trazer uma protagonista feminina), em torno de 35 a 40% do público era composto por mulheres. Considerando que os jogos da série alcançavam meio milhão de unidades vendidas com facilidade, pode-se estimar que em torno de 200 mil mulheres o jogaram na época, em um momento muito anterior à ampla popularização dos computadores e da internet no mundo. O número também é um bom indicativo de como a perspectiva feminina presente na produção da Sierra se convertia em audiência.
Segundo Brenda Romero, game designer e escritora do livro Sex in Video Games, até mesmo Leisure Suit Larry, uma série de comédias eróticas canastronas da Sierra, criada e dirigida por Al Lowe, tinha um público feminino enorme.
Neste contexto, a Sierra foi capaz de emplacar com grande sucesso produções arriscadas e inovadoras, que envolviam diretamente questões do universo feminino, sob a perspectiva femina. King’s Quest VII: The Princeless Bride, protagonizado por mãe e filha, conta a história de uma princesa que prefere a liberdade ao matrimônio, divergindo de sua mãe, que a pressiona a casar. Phantasmagoria é sobre o enclausuramento feminino em ambientes domésticos sob a opressão de um marido violento. Ambos foram criados simultaneamente por Roberta — no caso de King’s Quest VII, com o auxílio de Lorelei Shannon, que assumiu depois o controle em Phantasmagoria: A Puzzle of Flesh. Anos mais tarde, esse tipo de protagonismo feminino, algo tão natural para a Sierra, seria um grande tabu na indústria de games.
Isso não quer dizer que a Sierra foi um paraíso: uma de suas séries mais controversas, Police Quest, trazia muito do conservadorismo de seu criador, Jim Walls. Quando Ken decide contratar o polêmico ex-chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles, Daryl F. Gates, flagrado em vídeo espancando um motorista negro em 1991, para trabalhar no terceiro jogo da série, funcionários da Sierra chegaram a protestar nos corredores. O jogo foi lançado mesmo assim, e com todo o racismo, misoginia e homofobia que se espera de algo criado com visões reacionárias.
Mas mesmo quando pendia para uma perspectiva conservadora, havia mulheres envolvidas: uma das principais roteiristas de Police Quest foi Tommy Dargan, que antes de ser contratada pela Sierra foi editora do famoso programa de TV policial America's Most Wanted. O próprio fato de a Sierra permitir que uma série como Police Quest existisse atesta a diversidade de perspectivas que a companhia cultivava — além de uma certa tendência de capitalizar em cima de polêmicas quando oportuno.
A ascenção do gamer
Até meados da década de 90, o computador pessoal era associado ao espaço doméstico e, consequentemente, à família — uma perspectiva que também guiou a Atari. Havia uma grande intersecção entre entretenimento e educação nos softwares disponibilizados para o PC. Os jogos se enquadravam neste campo, às vezes pendendo mais para o entretenimento, às vezes para a educação. O conteúdo que nos acostumamos a consumir online a partir da virada do século, como o Wikipedia, videoclipes ou mesmo pornografia, eram disponibilizados na forma de CD-ROMs multimídia no mundo pré-internet. E essa grande variedade de produtos, voltados a crianças, adolescentes e adultos de ambos os gêneros, podia coexistir pacificamente nas prateleiras de lojas e revistas especializadas.
Isso tornava o mercado de PC mais aberto e um tanto diferente e mais complexo que o de consoles, bem como a percepção do público em relação a ele. PCs eram produtos caros direcionados a pais e mães, por meio dos quais filhos e filhas poderiam se divertir e aprender. Videogames eram brinquedos de criança, mais especificamente de meninos — uma tendência iniciada pela Nintendo durante a introdução de seu NES nos EUA como estratégia para driblar os efeitos da crise dos videogames de 1983 mas que até hoje estigmatiza a indústria de jogos eletrônicos.
A Sierra, que literalmente nasceu da mesa da cozinha de uma dona de casa, é tanto um produto dessa mentalidade aberta quanto uma das razões para que ela fosse predominante no PC. Não por acaso, ela oferecia opções para todos esses públicos — incluindo softwares de escritório, jardinagem, culinária, decoração e design. Não por acaso ela tinha um quadro de funcionários tão diversificado e heterogêneo.
Foi esse modelo que permitiu que inúmeros estúdios como a Sierra fossem fundados por mulheres entre os anos 80 e 90, inclusive por casais como Ken e Roberta. Ann McCormick, Leslie Grimm e Teri Perl fundaram a The Learning Company (de Coelho Sabido e Robot Odyssey, considerado um dos jogos mais complexos e difíceis de todos os tempos); Janice Davidson fundou com seu marido Bob Davidson a Davidson (que comprou a Blizzard Entertainment em 1994 com o sucesso de sua série Math Blaster); Toni Beninger e seu marido Brian Beninger fundaram a Sanctuary Woods (que publicou The Journeyman Project), Catherine Winchester fundou a Wonderlust Interactive (de Pantera Cor de Rosa: Passaporte para o Perigo), Shelley Day e Ron Gilbert fundaram a Humongous (de Putt-Putt) e por aí vai. Isso sem mencionar game designers, artistas, produtoras etc.
Havia portanto uma indústria de jogos bastante aberta, diversificada e heterogênea no PC, em que mulheres se sentiam bem-vindas para explorar, ainda que boa parte dela estivesse direcionada ao público infantil — uma grande tendência do mundo pré-internet e YouTube, impulsionada talvez pelo próprio mercado de consoles, que reforçava a ideia de que jogos eletrônicos eram coisa de criança.
Conforme a velocidade de processamento dos computadores pessoais foi aumentando, eles se tornaram o epicentro de uma nova e impactante onda de jogos de ação, tão comuns no meio de arcade e consoles, já dominados por uma mentalidade masculina. A chegada de Doom, em 1993, faz o mercado dar sua primeira grande guinada, do ritmo lento, quebra-cabeças lógicos e narrativas elaboradas dos adventures para o frenesi, a adrenalina e a violência dos jogos de tiro.
O que os adventures, em especial os da Sierra, tinham dos grandes clássicos literários — dos contos de fadas de King’s Quest ao romantismo gótico de Phantasmagoria — os first person shooters tinham da hipermasculinidade na cultura pop norte-americana — da agressividade do heavy-metal à fantasia de poder e culto às armas de fogo. Não coincidentemente, menos de três anos após o lançamento de Doom, Duke Nukem 3D ganha todos os holofotes no mercado de jogos de PC, idolatrado tanto pelas suas façanhas técnicas quanto pelo conteúdo “adulto”: violência, dançarinas semi-nuas e piadas machistas.
Ainda que Myst, RollerCoaster Tycoon, SimCity 3000 e outros jogos não violentos dos anos 90 superassem largamente as vendas de Doom ou Duke Nukem 3D, a celebração em torno dos títulos de ação se tornou a norma, alinhando o mercado de PC ao de consoles e direcionando a atenção da indústria e do público. Essa mudança de paradigma transforma profundamente o cenário, que acaba resultando num processo de exclusão e marginalização das mulheres desse ecossistema — um que continua em funcionamento.
Ao final da década, o mercado de jogos de PC havia se transformado por completo: sites declaravam a morte dos adventures, enquanto debochavam de um quebra-cabeça sem sentido de Gabriel Knight 3: Sangue Profano, o último suspiro da Sierra. Jane Jensen, responsável pela série, diz ter sido assediada e perseguida por mais de uma década por conta desse puzzle, que sequer foi criado por ela.
O humor irônico, ácido, politicamente incorreto e muitas vezes misógino, acabaria se tornando comum na mídia e na publicidade de games, que buscava a todo custo acompanhar o “amadurecimento” de seu público, a exemplo dessa matéria, publicada em uma revista de 1998, que lista os melhores 25 jogos “de homem”, ou em sites como o idolatrado Old Man Murray, de Erik Wolpal e Chet Faliszek — que abriu portas para que eles se tornassem roteiristas de jogos aclamados como Psychonauts, Portal e Left 4 Dead. Décadas mais tarde, esse tipo de humor depreciativo viria a ser peça integral para a disseminação online de movimentos de extrema direita.
Nesta mesma matéria, Myst, Theme Hospital e Ultima Online entram em uma lista de “jogos de menininha”. Esse tipo de pensamento permanece firme e forte até hoje em certos círculos da comunidade de games, que tentam desmerecer e desqualificar jogos ditos casuais. Não coincidentemente, essa categoria de jogo atrai um grande público feminino, incluindo pessoas de meia idade e idosas, como o fenômeno Candy Crush Saga. Da mesma forma, mulheres da área como jornalistas e streamers constantemente lidam com homens que duvidam de suas habilidades e conhecimento em videogames, pedindo comprovações de achievements — a infame “carteirinha gamer”.
Em março de 1998 a CUC Internacional, um poderoso conglomerado de serviços que havia comprado a Sierra dois anos antes, é denunciada no maior escândalo de fraude contábil dos EUA. De todas as companhias de jogos que faziam parte da gigante, incluindo a Blizzard Entertainment, a Sierra foi a mais afetada, o que resultou em reestruturações que acabariam no fechamento do estúdio de Oakhurst, com uma demissão em massa de mais de 250 pessoas. Devastado com o desmantelamento, Ken deixa a companhia primeiro, seguido de Roberta, após terminar seu trabalho em King’s Quest VIII: Mask of Eternity, lançado em dezembro do mesmo ano. Embora a Sierra tenha continuado nos anos 2000 adentro como uma publicadora, seu espírito se esvai com o encerramento de seus estúdios de desenvolvimento.
Jane encontrou refúgio no mercado de jogos casuais online, que floresceu organicamente com a popularização da internet durante a década de 2000, mas sua carreira foi amplamente ignorada pela mídia a partir daí, mesmo que ela tivesse co-fundado sua própria companhia, a Oberon Media. O mesmo caminho foi seguido por muitas dessas mulheres, que encontraram no meio de jogos casuais e infantis um espaço seguro. Tantas outras, se vendo perdidas em uma indústria e cultura tão diferentes daquelas que a Sierra nutria, mudaram de rumo.
Na emblemática matéria de capa da edição de setembro de 1999 da revista PC Gamer, que elenca os 25 maiores “Deuses dos Videogames”, Roberta é a única mulher. Se esse grupo representasse a distribuição por gênero da indústria no período, as mulheres não seriam nem 5%. É quase como se os levantamentos demográficos atuais da indústria dos videogames fossem um grande avanço.
Embora pudessemos passar horas questionando a seleção feita pela revista, o que importa aqui é o contexto. Em 1999, o mercado de jogos para PC já havia sido dominado pela perspectiva masculina e delineado o que tornaria um indivíduo em um “deus dos videogames”. Ao contrário da grande maioria, Roberta não era uma técnica e nem uma “gamer” no sentido em que a publicidade e a mídia propagavam. Apesar de sua longa história com jogos, não programava e era assumidamente um pouco avessa à tecnologia. O que a movia nessa indústria eram histórias. E, de certa forma, a Sierra era uma extensão de sua personalidade, na forma como tornava pessoas “não gamers” em designers e contadores de histórias interativas. Na própria matéria, ela falava sobre tornar jogos acessíveis a pessoas “comuns”.
Em seu artigo Um pedestal, uma mesa e uma carta de amor: arqueologias de gênero na história dos videogames (em uma tradução livre), Nooney diz: “Nossa percepção de que a história dos videogames é ‘toda sobre os meninos’ é consequência de um certo modo de escrita histórica, preservação, memória e apegos afetivos temporalmente específicos, que produzem a maneira como contamos a história dos videogames.”
“A história do videogame não sabe o que fazer com Roberta Williams a não ser destacá-la. Ela não se encaixa na narrativa que tradicionalmente situa suas origens na camaradagem dominada por homens, formada por práticas subculturais ‘masculinas’ dos jogos de tabuleiro, hacking, programação e domínio técnico. Como outras mulheres notáveis que trabalharam em campos tradicionalmente dominados por homens — analogias fáceis podem ser feitas com Ada Lovelace ou Grace Hopper na história da computação — Roberta ocupa um pedestal com mais frequência do que um contexto, funcionando como o ponto de equilíbrio de gênero em uma linha do tempo da história dos videogames que está mais do que feliz em recebê-la como uma representante pontual de ‘mulheres e jogos’.”
A história de Roberta é importante não para a elevarmos a um pedestal, como critica Nooney, mas para nos lembrar de um modelo esquecido pela indústria, que concebia espaços atraentes a mulheres, tanto para criar quanto para consumir jogos. Lembrar da Sierra é lembrar que existiram muitas outras como Roberta, cujas histórias foram apagadas ou esquecidas. Décadas antes de palavras como diversidade e representatividade virarem tendência corporativa, às vezes mais como jogadas de marketing do que medidas concretas, a Sierra já as tinham conquistado. E para isso, não precisou de muito além de pessoas que mal sabiam o que eram videogames.