Com seu novo espaço de coworking, Behold quer unir estúdios e fortalecer a indústria
Após dois grandes sucessos consecutivos, Knights of Pen & Paper e Chroma Squad, a brasiliense Behold Studiosrapidamente passou a ser reconhecida como uma das maiores e mais bem sucedidas produtoras de games do Brasil. No entanto, diferentemente das outras companhias que despontaram neste cenário na última década, como a gaúcha Aquiris, a Behold continua enxuta em número de funcionários, mantendo os mesmos cinco sócios (todos desenvolvedores) que a fundaram em 2009, além de eventuais contratações temporárias.
Saulo Camarotti, responsável não apenas pela área de negócios, mas pela programação e design dos jogos da Behold, assume: “A gente não quer crescer.” Ele explica: “O que a gente está buscando é ser autêntico, sincero. E sentimos que quando tem muitas pessoas na jogada, muita gente palpitando, perde-se muito do emocional, da alma do jogo. Então a gente tende a ser menor de propósito.”
Mas se por um lado a equipe continua pequena, a Behold vem tentando ativamente expandir a cena de desenvolvimento em si, investindo em projetos que beneficiem não apenas a si própria, mas o meio do qual ela faz parte. A Indie Warehouse, um charmoso e bem equipado espaço de coworking e eventos que a companhia inaugurou no último sábado (26) em Brasília, faz parte dessa filosofia. “Agora que a gente tem dinheiro, pensamos em promover todo o ecossistema, porque assim podemos fazer com que novos talentos surjam naturalmente. Então faz uns cinco anos que a gente investe nisso.”
Localizada no Lago Norte, em Brasília, a Indie Warehouse é um espaço de coworking para desenvolvedores
Durante o desenvolvimento de Chroma Squad, a Behold se mudou para a Indie House, uma mansão localizada no Lago Norte, em Brasília, onde promoveu eventos e palestras voltados a desenvolvedores e uniu diferentes estúdios de diferentes estados do Brasil. Há um ano, em parceria com uma empresa especializada em jogos analógicos, a companhia inaugurou a Ludoteca BGC, uma loja de jogos de tabuleiro e editora. Agora, seu novo empreendimento é a Indie Warehouse, que dá continuidade ao conceito da Indie House.
Ocupando um galpão de mil metros quadrados, também no Lago Norte, a Indie Warehouse é equipada com arquibancada para palestras, uma área de livre acesso com bancadas para trabalho, salas de reunião, um dispositivo de realidade virtual HTC Vive, uma área externa, banheiros, um café e uma ampla estação de trabalho reservada, onde está instalada a própria Behold. As mesas da área de livre acesso podem ser usadas gratuitamente durante o horário comercial. Já o espaço reservado é destinado a equipes ou desenvolvedores solo que contratarem planos pagos, que vão de R$ 300 a R$ 600 por pessoa, e que dão acesso a uma série de serviços, facilidades e descontos aos eventos organizados pela Behold.
Saulo não revelou o valor do investimento, mas sugeriu que a reforma do galpão, que antes era uma madeireira, saiu por uma cifra de seis dígitos (ou seja, por pelo menos R$ 100 mil) — valor bancado pela Behold e outros três investidores-anjo. “As pessoas que usam o espaço vão pagar basicamente a continuidade dele. Quando a gente tiver rodadas de negócios e investimentos aqui dentro, aí sim é que os nossos investidores-anjo vão começar a recuperar o valor da reforma. Então, por exemplo, alguém chega e diz ‘quero injetar dinheiro aqui pra criar uma incubadora, uma aceleradora de games’ aí esse valor vai ser retornado aos sócios iniciais.”
No momento, há 10 estúdios instalados na Indie Warehouse (além da própria Behold), o que corresponde a aproximadamente 30% da capacidade do local. Dentre elas, está a Glitch Factory, que lançou Party Saboteursem 2016 e atualmente desenvolve No Place for Bravery.
O próprio evento de inauguração, que durou da manhã até a noite do último sábado, foi uma amostra do potencial da Indie Warehouse em reunir desenvolvedores não apenas da cena local mas do resto do país. Dentre as aproximadamente 100 pessoas que participaram do evento, que contou com palestras, havia profissionais e estudantes de norte ao sul do país.
“Acredito que se nos focarmos só em Brasília, trocando experiência entre nós, a gente não vai chegar muito longe”, argumenta. “Claro que já tem uma riqueza muito profunda no que a gente pode compartilhar aqui dentro. A galera da Glitch Factory chegou de repente com um jogo fantástico, que eu nem imaginava que podia ser feito no Brasil em tão pouco tempo e estão aqui agora com a gente. Mas eu sinto que, de vez em quando, a gente vai precisar trazer uns players de fora, nem que seja pra ficar um tempo, um mês ou dois, ou mesmo um ano. E acho que isso que vai trazer essa riqueza. Ele vem com a cabeça totalmente diferente e eu sinto isso porque a gente viaja muito pra fora, como Behold. Esse tipo de troca é muito boa.”
Mas por quais razões uma empresa correria o risco de investir seu dinheiro e tempo em empreendimentos paralelos que podem não trazer rendimentos imediatos? Por que apenas não formar novas equipes e separá-las em diferentes projetos paralelos?
“Minha cabeça é muito coletiva”, explica Saulo. “Não consigo entender que minha vida vai ser melhor se eu estou melhorando apenas ela. Em toda a minha volta tem lama e eu estou tentando crescer… não faz sentido. Então eu entendo o princípio que só quando o todo crescer é que eu vou estar realmente me desenvolvendo.”
Talvez a Behold fosse um estúdio de games como qualquer outro se não fossem as aspirações pessoais de Saulo, que é filósofo e professor de filosofia, ética e sócio-política na Nova Acrópole, uma escola internacional. “Na minha visão filosófica há essa ideia do ser humano como um grande coletivo, um grande sistema, e não apenas como indivíduos separados. Pensando por essa minha formação moral e ética, essa é a razão. Mas sem os meus sócios, nada disso seria possível também, porque caminhamos juntos.”
“Aqui mesmo no galpão, veja: o Léo, que é programador, está ali na entrada credenciando a galera, o Gui está ali cuidando da mesa de som. Isso é massa. A gente não precisa só ficar fazendo nossas funções básicas se a gente pode expandir.”
Neste momento da entrevista, alguém consulta Saulo à distância, por gestos, pois uma palestra havia terminado e queriam perguntar a ele o que fazer em seguida. “Coffee break!” , Saulo gritou. E, como se tudo tivesse sido combinado, houve uma demonstração prática do que ele havia acabado de me contar. “Deixa eles se virarem. Eu gosto que as pessoas tenham autonomia.”
Altos e baixos
O último lançamento da Behold foi Galaxy of Pen & Paper, um spin-off de temática espacial de seu primeiro grande sucesso, Knights of Pen & Paper. Seu desenvolvimento começou paralelamente a Chroma Squad. “Surgiu a oportunidade de fechar um contrato com a [publisher] Paradox para fazer o Galaxy e a gente não podia abrir mão disso”, conta Saulo. “Não dava pra esperar terminar o Chroma.”
Assim, eles absorveram a equipe gaúcha da Otus (“os guris, como a gente chama”) e durante um ano foram eles que tocaram o desenvolvimento de Galaxy, supervisionados pela Behold. “Vieram quatro guris pra cá e começaram o projeto por conta própria, ainda que dentro da Behold. Quando terminamos o Chroma, a gente assumiu de novo e voltei a ser o produtor”, conta Saulo.
Durante dois anos, Galaxy foi mantido pela Paradox, mas resoluções dentro da publisher com grandes investidores fizeram com que o projeto fosse cancelado na reta final de seu desenvolvimento. “Pra gente o Galaxy é enorme, mas pra eles era pequeno”, explica. Graças à boa relação do estúdio com a Paradox, eles puderam continuar trabalhando no jogo por conta própria: assumiram os custos finais de produção, o trabalho de divulgação e o lançaram de forma independente, tudo isso em apenas seis meses.
Ironicamente, a continuação de Knights of Pen & Paper, encomendada pela Paradox e desenvolvida por um estúdio finlandês sem nenhuma relação com a Behold, acabou se tornando uma pedra no sapato do estúdio brasiliense. “Ele não foi bem aceito, as notas foram baixas, vendeu pouco e depois de um momento virou free-to-play, então as pessoas que já tinham pago ficaram muito putas. Com isso tudo, na hora de fazer uma campanha do lançamento do Galaxy, a gente teve que ir levando isso em consideração. A primeira frase da descrição do jogo no Steam é ‘sem microtransações!’.”
Financeiramente, o risco acabou compensando: “O resultado foi muito parecido com o Chroma Squad, meio milhão de reais em duas semanas.” Apesar disso, foi o lançamento mais turbulento da Behold em anos.
A primeira versão saiu com um número considerável de bugs, que acabou sendo refletido na recepção do jogo. Com aproximadamente 4,8 mil unidades vendidas no Steam desde que foi lançado, há um mês, e a temida classificação “mixed” (neutras, em português), dada automaticamente a partir das avaliações dos usuários, Knights não foi exatamente um sucesso no PC. Em comparação, Chroma Squad, lançado em 2015, acumula mais de 300 mil cópias vendidas na plataforma (20 mil no período de lançamento) e recebe a classificação ‘extremamente positivas’ em suas avaliações.
Já no mobile, o resultado foi mais positivo, com mais de 30 mil cópias vendidas. Mas por lá o lançamento também não foi tão suave: “A gente demorou umas duas semanas para reverter as notas baixas. Isso foi bem chato. Foi um momento difícil pra gente. As avaliações no Google Play estavam em 3,5 [de 5], o que é bem ruim. O próprio Google mandou um aviso pra gente: ‘vocês estão destacados, mas se continuarem com nota 3, vocês saem’. Então foram duas coisas que a gente fez: corrigimos os bugs e passamos a responder todas as críticas, uma por uma. Nós mesmos respondíamos. O Gui é nosso community manager. Mas como era urgente, todo mundo se envolveu.”
Por ora, a equipe trabalha não apenas em melhorias para Galaxy, mas também em um pacote de conteúdo adicional, bem como um DLC para Chroma Squad que irá expandir os aspectos de criação e customização do jogo, a ser anunciado em breve.
Talvez não seja coincidência que o próximo projeto da Behold compartilhe muito da filosofia aplicada na Indie Warehouse, de unir forças entre diferentes pessoas e trabalhar a comunidade. Out of Space, que recebeu aporte de 1 milhão do edital de games da Ancine, será um jogo cooperativo de estratégia para até quatro jogadores, com inspirações em Overcooked, Don’t Starve Together e Astroneer. Com visual 3D, as partidas, que durarão aproximadamente uma hora, serão geradas proceduralmente. O jogo será pensado desde o início para integrar uma comunidade, com ferramentas de criação e suporte a mods. Ainda não está claro se haverá a possibilidade de partidas online, mas Saulo admite ser um fã de partidas locais: “Eu tive um Nintendo 64 na minha adolescência e aquilo me marcou: jogar em casa com os amigos em quatro controles”.
*O jornalista viajou para Brasília a convite da Behold Studios