Reinventando espaços: a trajetória de Dylan Cuthbert, co-criador de Star Fox
O inglês Dylan Cuthbert faz parte da primeira grande geração de criadores de videogames, surgida entre as décadas de 60 e 80. Similar a de muitos veteranos desta indústria, sua história de desenvolvedor começa em seu próprio quarto, em 1982, dedicando o tempo livre que a vida estudantil lhe permitia para aprender a programar em um computador que rodava softwares em fitas cassetes e exibia imagens em uma TV. “Eu comecei a programar em um Sinclair ZX-81 quando eu tinha 10 anos”, me conta Dylan, do outro lado do mundo, em Quioto, no Japão, durante uma troca de e-mails.
Apaixonado pelos jogos, Dylan sonhava em ter seu próprio estúdio de games, o que o levava a desenhar os logotipos de sua imaginária empresa – que no futuro, viria a ser a Q-Games, um dos estúdios independentes japoneses de maior sucesso da atualidade. Contudo, a primeira companhia de games que ele trabalhou não foi sua, e sim do igualmente precoce Jeremy ‘Jez’ San, que aos 16 anos fundou a Argonaut Software em sua própria casa, em Londres. Um dos precursores dos jogos em 3D, com seu Starglider, Jez pediu a Dylan que apresentasse uma demo de uma animação tridimensional, em seu teste admissional. A demo criada por Dylan era o logotipo giratório de sua empresa imaginária, Unique Productions, mas sem o “Productions” – faltaram polígonos para renderizá-lo. Ao conseguir a vaga na Argonaut, aos 17 anos, Dylan abandonou o colégio.
Seu primeiro trabalho na Argonaut foi desenvolver uma engine 3D para o Game Boy. “Usei o know-how que havia adquirido anos antes e rapidamente montei um rasterizador de polígonos e construí uma pequena demo de um jogo de tanques em 3D baseado no clássico Ballblazer”, conta Dylan. Curiosamente, eles fizeram isso quebrando o sistema de proteção do console, uma vez que a companhia não tinha licença para desenvolver jogos para o Game Boy. Jez levou o experimento para a CES (na época, a E3 não existia), onde ele o mostrou para pessoas de diversas empresas, incluindo a própria Nintendo. Mais impressionada com o fato de alguém ter conseguido criar uma tecnologia em 3D no Game Boy, algo que seus próprios desenvolvedores achavam ser impossível, do que com a quebra do sistema de proteção, a companhia não tardou em levar o desenvolvimento do projeto adiante, que acabou se tornando X, o primeiro jogo tridimensional da Nintendo. Embora o título não tenha sido lançado fora do Japão, foi ele a origem do chip Super FX e de Star Fox, desenvolvidos em parceria entre a Argonaut e a Nintendo.
Enquanto Jez trabalhava na construção do hardware gráfico que acompanharia o cartucho de alguns dos poucos jogos em 3D do vindouro Super Nintendo, Dylan permanecia a maior parte de seu tempo na sede da Nintendo em Quioto, onde trabalhava em software com um dos maiores visionários da companhia, Shigeru Miyamoto. “Miyamoto era ótimo, apesar de ele fumar no escritório naquela época (uma prática comum no Japão), o que deixava o ar um pouco carregado. Nós saíamos para almoçar todos os dias para que ele pudesse melhorar o inglês dele, o que era legal, pois eu também havia começado a aprender japonês. Apesar disso, a comunicação entre a Nintendo e a Argonaut foi feita primariamente em inglês durante todo o desenvolvimento de Star Fox.”
Antes de se tornar Star Fox, contudo, o projeto de estreia do chip Super FX seria o terceiro jogo da série Starglider, com sua característica liberdade de movimentação em 360 graus. A dificuldade de navegação pelos ambientes tridimensionais, contudo, não agradava Miyamoto. Durante o recesso de fim de ano, enquanto visitava o templo Fushimi Inari-taisha, em Quioto, Miyamoto teve a ideia de restringir o espaço tridimensional a corredores, tal como seus caminhos cercados por milhares de torii, os tradicionais portões vermelhos da tradição xintoísta. Não por coincidência, o templo é repleto de imagens de raposas, consideradas mensageiras do deus Inari. Star Fox tomaria forma a partir de então.
Com o sucesso de Star Fox (que foi apresentado com um incrível espetáculo de lasers na CES de 1993), a Nintendo imediatamente colocou a Argonaut (incluindo Dylan) para trabalhar em uma continuação – que seria o último jogo da parceria entre as duas, por contrato. “O desenvolvimento de Star Fox 2 levou dois anos no total, o que parecia um longo período na época, mas na verdade não foi tão longo assim uma vez que houve alguns intervalos. Eu passei alguns meses na Inglaterra e outros desenvolvendo o Star Wing: Official Competition [uma versão especial de Star Fox criada especificamente para competições após seu lançamento] para a Europa.”
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Star Fox 2 usava o chip Super FX 2, que era duas vezes mais rápido e tinha mais recursos comparado à primeira versão. O jogo também era significantemente diferente do original e potencialmente inovador: uma fusão de missões aéreas e terrestres, com mecânicas de plataforma em 3D, antes mesmo da popularização do gênero, alguns anos mais tarde. Embora Star Fox 2 estivesse pronto, o lançamento da nova geração de consoles, entre 1994 e 1995, como o PlayStation e o Saturn, mais potentes e nativamente preparados para jogos em 3D, e o pleno desenvolvimento de seu próprio console de 64-bit, o Nintendo 64, que viria a ser lançado em 1996, fez com que a Nintendo optasse por cancelá-lo. Em sua perspectiva, seria um desperdício lançar uma sequência tão esperada em um console que já estava chegando ao fim de seu ciclo – e com gráficos aquém das novas tecnologias. Sua estratégia então foi transformá-lo em um novo jogo capaz de mostrar todo o poder de seu novo console, Star Fox 64, reaproveitando muitas das ideias de Star Fox 2.
Dylan tem o costume de falar sobre desapego à criação no desenvolvimento de jogos. Em sua palestra na GDC 2013, ele falou sobre a importância de construir e destruir ideias, com o intuito de descobrir o que nelas há de melhor e descartar aquilo que não funciona, mesmo que isso envolva jogar fora o que já havia sido desenvolvido e implementado. E Star Fox 2, trabalho seu nunca apresentado (oficialmente) ao mundo, parece estar diretamente relacionado a este aprendizado.
“Acho que todos reutilizam ideias, é assim que jogos melhores são criados”, me diz, quando pergunto se ele e a equipe da Argonaut se sentiram ressentidos por muito do trabalho feito em Star Fox 2 ter sido reaproveitado em Star Fox 64, que não possui nenhuma menção à Argonaut em seus créditos. “Além disso, com exceção de Takaya Imamura, artista 2D, a equipe de desenvolvimento de Star Fox 64 era totalmente diferente.”
Simultaneamente, a Argonaut apresentaria à Nintendo um protótipo de um jogo de plataforma em 3D baseado no Yoshi (que, em 1995, seria protagonista de seu primeiro jogo, Super Mario World 2: Yoshi’s Island, que inclusive fazia uso do mesmo chip de Star Fox 2, da Argonaut), na tentativa de convencê-la a manter a parceria entre ambas as companhias. Por alguma razão, a Nintendo não se interessou e o acordo entre ambas chegaria ao fim.
Embora Dylan não pareça guardar descontentamentos pelo cancelamento de Star Fox 2 e o fim da relação entre a Argonaut e a Nintendo, seu ex-chefe, Jez, sim. Em 2013, Jez, que não trabalha mais na indústria de games, sugeriu em uma entrevista à Eurogamer que o protótipo do jogo 3D de Yoshi feito pela Argonaut teria influenciado Miyamoto na criação de Super Mario 64. “Miyamoto-san chegou para mim após um evento, se desculpou por não fazer o jogo do Yoshi conosco e nos agradeceu pela ideia de um jogo de plataforma 3D. Ele também disse que nós receberíamos o suficiente pelos royalties do nosso acordo para compensar isso. Para mim isso foi fraco, pois sou da opinião que a Nintendo terminou nosso acordo sem explorá-lo por completo. Eles cancelaram Star Fox 2 mesmo que ele estivesse terminado e usaram muito do nosso código em Star Fox 64 sem nos pagar um centavo.”
Para Dylan, Miyamoto não foi influenciado pelo protótipo do jogo 3D de Yoshi no desenvolvimento de Super Mario 64, mas sim, por Star Fox 2, como ele me conta: “Eu duvido que Miyamoto sequer tenha jogado aquele protótipo, para ser honesto. Algumas das ideias de plataforma que desenvolvemos para o Arwing “caminhante” em Star Fox 2 foram usadas como ponto de partida para Mario, eu acho, mas isso foi apenas o gatilho de todas as grandes ideias que foram implementadas em Mario 64.”
“A Argonaut não tinha poder para produzir chips em grande escala e a tecnologia necessária para o próximo passo (o Nintendo 64). Acho que as duas companhias naturalmente se afastaram uma da outra, e o Jez já estava procurando outras oportunidades.”
O próximo passo da Argonaut foi transformar o protótipo do jogo do Yoshi em uma nova IP. Assim nasceu Croc: The Legend of Gobbos, estrelado por um simpático jacarezinho que, convenhamos, tem lá suas semelhanças com o icônico dinossauro do Reino dos Cogumelos. Ironicamente, o jogo foi considerado por muitos um clone de Mario 64, sendo que, enquanto projeto, sua existência precede o jogo da Nintendo. Dylan me explica que lançar Croc nas plataformas concorrentes da Nintendo (PlayStation, Saturn e PC) não foi uma espécie de vingança: “A Argonaut sempre esteve desenvolvendo jogos [além daqueles em parceria com a Nintendo] – eles até tinham alguns chips FX e jogos para outras plataformas em desenvolvimento, alguns dos quais nunca viram a luz do dia. Eles criaram até um jogo chamado Creature Shock para o Philips CDi, ou sabe-se lá como era chamado. Eles não estavam nem perto de fazer apenas jogos exclusivos para a Nintendo.”
A partir daí, porém, Dylan já não trabalharia mais na Argonaut. Em 1997, o desenvolvedor ingressou na Sony e trabalhou em Blasto, jogo de ação 3D exclusivo do PlayStation lançado em 1998, e em Pipo Saru 2001, nunca lançado no ocidente, com o criador de Ape Escape, Kenkichi Shimooka. Foi com ele, inclusive, que Dylan trabalhou na famosa demo técnica dos patinhos de borracha na banheira, mostrada na E3 2000 para demonstrar as capacidades gráficas do PlayStation 2.
O desejo juvenil de Dylan de ter seu próprio estúdio de games, porém, ainda reverberava. Em 2001, Dylan deixou a Sony para realizar seu sonho: fundar a Q-Games em Quioto, há poucos minutos de onde, anos antes, passou seus bons tempos trabalhando com a Nintendo. Seu histórico como programador e seus contatos consolidados tanto na Nintendo quanto na Sony acabariam por determinar o rumo da Q-Games: com foco tanto em tecnologia quanto em jogos, o estúdio independente viria a ter uma boa relação com ambas as empresas.
Além do brilhante puzzle Digidrive, primeiro jogo da companhia, lançado para Game Boy Advance, a Q-Games trabalhou em Star Fox Command, para DS, a convite da própria Nintendo, dado a história de Dylan com a série. “Miyamoto queria nos dar a chance e resgatar algumas ideias perdidas de Star Fox 2”, conta Dylan. “Eu estava alheio a quaisquer conflitos entre a Argonaut e a Nintendo. Sempre me dei bem com a Nintendo.” Por estar trabalhando atualmente com a Sony, contudo, Dylan não está envolvido no desenvolvimento do novo Star Fox para Wii U.
Pouco depois a Q-Games também desenvolveu para a Sony a Xross Media Bar e o elegante background do PlayStation 3. Nos anos seguintes, o estúdio viria a ser reconhecido mundialmente por sua bem sucedida e inovadora série Pixel Junk, que brilhou na plataforma da Sony, ainda que alguns de seus jogos tenham sido lançados também para PC. “Não trabalhamos com ambas as companhias simultaneamente. A série PixelJunk foi autofinanciada, então mesmo que sua plataforma fosse o PlayStation, nós estávamos trabalhando como uma third party. Nunca tivemos pressão de nenhum dos lados [da Sony ou da Nintendo] – eles não se importam, desde que os jogos sejam bons!”, me explica.
Pergunto para Dylan por que, sendo ele um dos pioneiros dos jogos em 3D, a Q-Games se focou tanto em jogos 2D, ainda mais em uma época onde os gráficos tridimensionais já estavam tão estabelecidos. “Eu não gosto de me limitar a um único gênero em particular”, ele me explica, “mas no caso dos jogos em 2D eu notei que, de repente, as pessoas tinham TVs de alta definição conectadas via HDMI, o que dava um sinal de alta resolução muito claro comparado aos primeiros jogos 2D de consoles. Para mim, isso abriu uma janela de oportunidade para uma nova onda de jogos 2D.”
O próximo jogo da Q-Games, contudo, não será em 2D. Além de manter a característica fusão entre tecnologia inovadora e design inventivo, pela qual o estúdio é reconhecido, o jogo explora a construção e organização orgânica e coletiva em espaços tridimensionais. The Tomorrow Children, anunciado na Gamescom, em agosto, está sendo desenvolvido em parceria com o SCE Japan Studio e promete ser uma estreia impactante da Q-Games no PlayStation 4. Há três anos a Sony e a Q-Games secretamente desenvolvem o jogo, que “começou pequeno e cresceu lentamente”, partindo de um desenvolvimento iterativo.
“É um jogo online que parece um jogo offline”, me explica Dylan, que atua no desenvolvimento tanto como diretor quanto diretor de arte. “Ele usa uma tecnologia de comunicação de rede síncrona e assíncrona para permitir a presença de 50 a 100 pessoas em cada fase, mas você não as vê o tempo todo. Você joga do ponto de vista de um jogo de plataforma 3D, como Mario 64.”
Em The Tomorrow Children, cada jogador é um cidadão em uma comunidade semi-Marxista, que depende da atuação coletiva para prosperar. Em certos momentos, os jogadores podem se candidatar a prefeito e disputar uma eleição, em busca dos votos da maioria. Apesar da temática política e referências à União Soviética, Dylan afirma que não há nenhuma mensagem subversiva secreta. “É apenas sobre explorar a ideia de múltiplas pessoas ajudando umas às outras para construir algo maior que elas poderiam construir sozinhas.”