Como um estúdio brasileiro quer trazer o universo de HQs aos videogames
Um universo em expansão, explorado em locais e períodos diferentes. Várias histórias amarradas pela lógica que rege aquela realidade, aumentando cada vez mais em escopo e, possivelmente, em vozes, permitindo que outros autores criem suas próprias tramas dentro daquele mundo.
Isso é parte dos planos que a Tlön Studios tem. Soul Gambler, o primeiro trabalho deles, chegou recentemente ao Steam, e ele deverá ser apenas a pedra inicial de um universo maior e muito mais rico. Para entender todo esse processo, eu conversei com Horacio Corral, um dos fundadores da Tlön Studios, para que ele contasse sobre a origem do Soul Gambler e como o estúdio pretende aumentar o escopo daquilo que foi iniciado com esse jogo.
Soul Gambler é um jogo focado em narrativa. Trata-se de uma história em que Fausto, um homem jovem, insatisfeito com sua vida e com a monotonia de seu emprego, que recebe a chance de realizar um pacto demoníaco. O personagem passa a poder vender partes de sua alma para ter desejos realizados. Esses desejos vão desde vontades mais profundas, como conquistar a atenção de uma garota e se tornar mais proficiente em várias habilidades, até coisas mais triviais, como terminar rapidamente um trabalho chato ou não ter que esperar um ônibus. Como desejos têm pesos diferentes, cada um deles custa uma porcentagem diferente da alma de Fausto. De forma a conseguir sentir melhor o leque de possibilidades dadas ao jogador, eu o joguei Soul Gambler três vezes, fazendo sempre escolhas diferentes e me surpreendendo com os novos cenários com que me deparava a cada nova jogada.
Soul Gambler
Diferente de uma Visual Novel, o jogador possui uma participação mais ativa. Escolhas nos são dadas constantemente e elas guiam de maneira bem significativa o decorrer da história. Os eventos acabam sendo afunilados para a mesma situação final, porém o caminho até lá pode seguir vias bem diferentes, fazendo com que Fausto visite locais distintos. É como se o jogo se situasse em um meio caminho entre Visual Novels e os trabalhos mais recentes da Telltale Games, como The Walking Dead e The Wolf Among Us.
Justamente por não se encaixar dentro de um padrão já determinado que Corral e outros membros da Tlön possuem um termo específico para falar de seu trabalho. “Estamos querendo pleitear a criação de um subgênero dentro dos Adventures, que seria Visual Adventure, porque tem um pouco de Visual Novel e um pouco de Graphic Adventure. Mas não é nem um nem o outro.”
Antes de chegar ao ponto de ter um novo subgênero atrelado a ele, Soul Gamble passou por um longo processo, chegando a trocar de estúdio de desenvolvimento. O projeto inicial possuía a participação de Caio Ribeiro, também fundador da Tlön, que na época estava na Mother Gaia. Ao lado de outros membros do estúdio, Ribeiro conversou, durante uma BIG, com Chris Avellone, que trabalhou em Fallout 2 e escreveu Planescape: Torment (além de ter sido seu designer principal). Avellone deu a ideia de colocarem o jogo no Kickstarter. O projeto de crowdfunding, que tinha como objetivo mais ser um a campanha de marketing, pediu por US$5 mil, que foram arrecadados e o desenvolvimento teve continuidade. “Eles iam fazer o jogo de qualquer jeito,” diz Corral, “mas ia ser muito interessante ser uma das empresas brasileiras a estar no Kickstarter com um jogo. Ele foi financiado, deu tudo super certo.”
Apesar da ideia estar encaminhada, o direcionamento estratégico da Mother Gaia estava mudando e Soul Gambler estava perdendo lugar. “O jogo foi apenas terminado, deu dois, três meses, e a empresa mudou completamente seu quadro de funcionários. O Soul Gambler atual é um jogo que foi terminado, mas não teve revisão, não foram checar bugs e coisas assim. Tanto que até hoje ele tem uns probleminhas.” Esses problemas mencionados por Corral ainda persistem e o impacto deles pode ser verificado ao se acessar os fóruns do jogo no Steam. O maior deles vêm da necessidade de Internet Explorer 10 para que o título rode, uma herança da concepção inicial do título.
Foi por conta dessas mudanças que Ribeiro acabou por decidir sair da Mother Gaia. Como parte do acordo de seu desligamento, ele pediu o Soul Gambler e os direitos relacionados ao jogo, podendo então fazer o que quisesse com a propriedade intelectual. Foi nessa época que Ribeiro e Corral se conheceram. “Eu e minha esposa propusemos fazer a tradução do jogo para o inglês,” conta Corral, porém a proposta não parou por aí. Eles começaram a conversar mais e resolveram abrir juntos um estúdio de games, a Tlön Studios, com a ideia inicial de levar Soul Gambler, disponível até então para iOS, para o maior número de plataformas o possível.
Ao que tudo indica, a aposta tem dado certo. “Em média, para um jogo com in app purchasesser considerado bom, uma taxa de conversão boa, é de algo em torno de 2%. A maioria dos jogos tem zero vírgula alguma coisa. No caso do Soul Gambler, a gente tem uma taxa de conversão de 5%.” Um sucesso similar tem sido encontrado no Steam, ao qual o jogo chegou via Greenlight. “O pessoal que entende que o Soul Gambler é um jogo curto e que o objetivo é na verdade jogar três, quatro vezes, esse pessoal está adorando o jogo. Tem gente que teve aquele problema com o Windows e obviamente ficam bravos. Mas tanto as vendas quanto a recepção das pessoas tem sido muito, muito boa. A taxa de conversão padrão dos jogos por view na página principal do Steam é de 0,3. A nossa é o dobro disso.” Além disso, a Tlön espera que com a Versão do Diretor, que será lançada no fim do ano, o jogo receba um novo boom de vendas, influenciado não só pelo conserto dos problema já mencionados (incluindo eliminar a necessidade de Internet Explorer para que ele seja jogado), como também pela adição de novos trechos da história – no caso, acompanhando a personagem Peggy, que atualmente aparece apenas no começo e no final da aventura -, implementação de Steam Achievements e de Steam Cards. A nova versão, que virá como uma atualização gratuita para aqueles que já compraram Soul Gambler, também dará a todos um novo livro de arte digital e uma nova trilha sonora.
Para Corral, no entanto, o ponto principal da atualização está em um dinamismo que será adicionado às cenas do jogo. “A principal mudança vai ser que vamos implementar uma coisa muito parecida com o que temos hoje em dia na leitura de quadrinhos em um iPad ou no aplicativo da Comixology, que vão fazendo a narrativa como se fosse um story board.” Com isso, o jogo ficará muito mais próximo de uma HQ, que é a intenção da Tlön, do que de uma Visual Novel. “A gente vai tornar a narrativa mais rica. Por exemplo, quando o Fausto está cansado trabalhando, sofrendo e o chefe é um mala, você vai sentir isso com mais clareza, e vamos colocar várias artes novas. Então eu acho que mesmo quem já jogou o jogo vai se surpreender.”
Lidando com Escolhas
Quando a ideia de Soul Gambler começou a ser tida, a Telltale ainda não havia lançado The Walking Dead. Após ver como ela lidava com as escolhas tomadas pelo jogador, indicando (se deixarmos essa opção ligada) ações que serão lembradas por outros personagens, a Tlön começou a pensar em como implementar isso em seu próprio trabalho. “Nós queremos dar mais dicas sobre os efeitos das ações dos jogadores, porque a gente percebeu um problema de design em termos de narrativa. O Soul Gambler é muito fluido, muito verossímil. Então muita gente não percebe as escolhas que está fazendo. Alguns jogam duas, três vezes até perceberem que transar com a bêbada no banheiro do bar é uma péssima escolha. Você acaba praticamente com o jogo inteiro.” O jogo acaba não sendo extremamente punitivo ao fazer isso porque, por não ser tão longo, não é trabalhoso voltar ao ponto em que estávamos e tomar uma escolha diferente. Mas ele certamente tem mais de uma instância em que algo que você decide – seja na inocência ou não – interfere diretamente com o final que você irá obter. No geral, no entanto, as escolhas com piores consequências parecem ser aquelas que estão em um âmbito moral mais questionável, então é possível identificá-las.
E, sobre isso, uma curiosidade notada pelo estúdio: Soul Gambler não só possui um público maior de mulheres como elas percebem mais facilmente o peso dessas escolhas que trarão consequência negativas. “Acho que na nossa página 60%, 70% do público é feminino, e a maioria das mulheres pega o melhor final na primeira vez que jogam, enquanto os homens não.” Esse melhor final mencionado por Corral pede que vendamos nossa alma com muita parcimônia e em momentos chave, sem que saiamos dando pedaços de nossa essência como se fosse troco de bala. Adicionando à estatística, só fui conseguir obter o final mais positivo, considerado pelos criadores do título como canônico, na terceira vez que joguei Soul Gambler.
Além de uma maior transparência nas consequências das escolhas, uma outra coisa que não satisfez o estúdio com o formato que Soul Gambler possui atualmente é a ausência de telas de Game Over. “Atualmente você não tem praticamente como morrer no jogo, ele vai para frente independente do que você fizer. Queremos colocar mais becos sem saída, forçar a história a ou caminhar para a frente ou fazer você lidar com as consequências de suas escolhas.” Porém, não é preciso que haja momentos que afunilem o jogador para garantir que ele siga um caminho, de forma que você possa contar a história que quer contar? “É como mestrar um RPG. Você pode até dar liberdade para os jogadores, mas se eles não querem entrar na taverna e não querem ouvir a quest, complica. A intenção é realmente fazer isso de um jeito mais natural para a linguagem dos jogos. Ao mesmo tempo não forçar, mas orientar, indicar para o jogador o que ele poderia fazer, o que ele deveria fazer. A gente sente que são necessários esses fins mais pesados. Você tem que ter como perder. Você tem que ter alguma opção realmente ruim”.
O Dedo Mindinho de um Monstro de Muitos Dedos
Chegar ao Steam era um dos grandes objetivos que o estúdio tinha, porém, por conta da jogabilidade simples de Soul Gambler, eles buscam aparecer em mais plataformas. “Uma das nossas ambições é levar isso para Smart TVs. É um jogo que funciona muito bem nelas, com um controle na mão você joga tranquilamente. A gente brinca que se você já navegou pela internet ou já leu um gibi da Turma da Mônica na sua vida você já sabe tudo que você precisa saber para jogar Soul Gambler.”
O lançamento da Versão do Diretor se aproxima, porém a Tlön planeja que essa não seja a última vez que vejamos Fausto e esse universo em que pedaços de nossa alma podem ser trocados por favores. “O Soul Gambler é o dedo mindinho de um monstro de muitos dedos. Nossa intenção é realmente explorar esse mundo. O Fausto pegou a pontinha de uma coisa que é muito mais complexa.” Essa primeira aventura já dá ideia de um mundo maior. Em certo momento, por exemplo, uma resposta é oferecia a um questionamento de Fausto em troca de 300% de sua alma, algo impossível de se ter. A ideia é que com a atualização já tenhamos alguma ideia do que está por vir. “Já nessa atualização do jogo a intenção é colocar um flashforward da segunda aventura. Estamos vendo se vamos fazer algo no estilo de Mass Effect, de você ter tomado decisões no primeiro jogo que serão carregadas para o segundo. Queremos que esses elementos que a pessoa vai carregar de um jogo para o próximo tenham um peso maior. Vamos supor que no segundo jogo haja a opção da Peggy morrer. Eu quero que isso no terceiro seja terrível pra você. Ou que você encontre uma outra alma gêmea, ou que você lide com isso de outro jeito , traga ela para a vida de novo. Quero colocar essas opções mais graves.”
As visitas a esse mundo não precisarão se dar somente na jogabilidade atual. “Uma das vontades também é fazer um jogo no RPG Maker para explorar aventuras do Wagner [personagem amigo de Fausto] em uma pegada mais cômica. A outra é algo live action, feito com uma câmera GoPro, dentro da estrutura do Youtube, em que você joga Soul Gambler escolhendo os vídeos.”
A Tlön espera criar uma ferramenta para que possa criar com mais facilidade as outras histórias que quer contar em formato de Visual Adventure. “Nosso objetivo é fazer com que haja um framework, uma ferramenta para criarmos vários jogos nessa linha, em Unity, para depois aplicar para a maior quantidade de telas possíveis.” Esse set de ferramentas possivelmente passará a ser vendido para aqueles que se interessarem em fazer jogos que contem histórias nesse formato. “Nós daríamos suporte, ofereceríamos documentação e tudo o mais. Nós somos muito abertos a novas ideias, novos insights sobre o mundo do Soul Gambler, sobre histórias novas. Então há muita coisa que as pessoas vão comentando que nós vamos anotando. Estamos sempre prestando muita atenção.”