Ao dar novos rumos à Nintendo, Satoru Iwata transformou a indústria de videogames
A notícia da morte de Satoru Iwata divulgada na noite do último domingo (12) chocou a todos. Sabíamos que ele havia passado por problemas de saúde nos últimos meses, relacionados a um tumor no canal bilial, mas em nenhum momento nos passou pela cabeça que sua vida estava em risco. Ninguém sequer associava Iwata a um câncer. Sua carta direcionada aos acionistas da empresa, divulgada em meados de 2014, dispensava maiores complicações e afirmava que a doença havia sido diagnosticada precocemente, que a cirurgia de remoção do tumor havia sido bem sucedida. Os poucos sinais de que a saúde de Iwata estava se deteriorando, porém, passaram despercebidos.
Iwata já não aparecia mais com tanta frequência nos vídeos periódicos Nintendo Direct, possivelmente para evitar que o público reparasse em sua perda de peso. Ao que tudo indica, Iwata optou por aos poucos substituir sua própria e reconhecida imagem na série de vídeos por representações lúdicas, como na apresentação de Tomodachi Life, estrelada pelos Miis dos executivos da Nintendo, e no último e divertidíssimo Digital Event, exibido durante a E3, que os substituiu por bonecos. E, certamente, a aparição de um Iwata mais magro e pálido, sem seu característico rosto rechonchudo, poderia desviar a atenção do público para sua aparência – como vinha acontecendo no final de 2014, quando ele afirmou no Twitter que, apesar da perda de peso, passava bem. Tudo isso me faz pensar no quanto Iwata abdicou de sua própria saúde em função da Nintendo.
Iwata foi o primeiro indivíduo de fora da família Yamauchi, que fundou a Nintendo em 1889, a assumir sua presidência, logo após a saída de Hirochi Yamauchi, responsável por transformar a fabricante de cartas e brinquedos na maior empresa de games do mundo, em meados da década de 90. Iwata, que então era presidente da HAL Laboratories, parceria de longa data da companhia (responsável por jogos da série Kirby, Super Smash Bros. e Earthbound/Mother), foi incumbido de levar a Nintendo adiante, em um cenário muito mais competitivo e em um período em que a companhia parecia perder sua força para gigantes como a Sony e Microsoft.
Para manter a Nintendo relevante, Iwata foi responsável por assumir os riscos e dar novos direcionamentos à companhia, ainda que sempre respeitando e estendendo o legado de Yamauchi. Ao introduzir o Nintendo DS, ele começou a lidar com o que viria a ser uma constante na história recente da companhia: olhares desconfiados do público e a frequente acusação de que a companhia estava abandonando seus antigos fãs. As manobras perigosas, porém, foram responsáveis por algumas das maiores inovações na indústria dos videogames: a introdução de novas e mais acessíveis formas de jogar, em um mercado saturado, que sofria para atingir a maioria indiferente. Ao introduzir jogos baseados em toque, gestos e movimentos corporais, muito antes da chegada dos smartphones e tecnologias que hoje fazem parte da nossa rotina, a Nintendo de Iwata criou uma revolução que se estenderia para além dos videogames.
A desaceleração recente da Nintendo começou com o lançamento do 3DS, que durante suas primeiras semanas amargou vendas muito abaixo do esperado pela companhia. Mudanças estratégicas, que incluiu um generoso corte no preço do portátil, contudo, fez com que ele se recuperasse e atingisse rapidamente o sucesso. Com o Wii U foi diferente: o console caiu na armadilha da ambição pela busca por novas formas de interação com jogos, que vinha marcando a gestão de Iwata. Com um hardware confuso, mal compreendido pelo público, e baixa adesão de produtoras, o Wii U foi responsável por levar a Nintendo ao vermelho após décadas de lucro, o que fez com que Iwata assumisse a culpa e tomasse a decisão de reduzir seu próprio salário em 50% durante cinco meses. Estranhamente, o baque aconteceu no mesmo período em que Iwata revelava a existência de sua doença.
Mas em vez de puxar o freio, Iwata pisou fundo no acelerador. Nos últimos dois anos, a Nintendo anunciou e lançou os amiibos, que representam um dos maiores sucessos recentes da companhia, revelou os planos iniciais do seu ainda misterioso próximo hardware, de codinome NX, que integrará múltiplas plataformas e serviços, anunciou a histórica (e também arriscada) decisão de lançar jogos para tablets e smartphones e fez de seus programas em vídeo um dos modelos mais interessantes de comunicação com o público. Sem grandes alardes, a companhia ainda tem lidado com as críticas e passado a ser mais inclusiva em seus jogos: os próximos títulos das séries Animal Crossing e Fire Emblem permitirão a criação de personagens de diferentes tons de pele e identidade sexual.
Enquanto Yamauchi foi responsável pela consolidação da Nintendo em uma indústria incipiente, coube a Iwata transformá-la – e, no processo, transformar a própria indústria dos videogames. De uma companhia rotulada como quadrada, conservadora e avessa à novas tecnologias, a Nintendo de Iwata vinha se tornando cada vez mais aberta às mudanças da sociedade e à nova realidade na qual os games estão inseridos, ainda que sempre respeitando sua eterna filosofia: criar jogos divertidos e encantadores, não importa a quem.
Para muitos de nós, Iwata provavelmente será lembrado por suas aparições no Nintendo Direct. Em muitos aspectos, ele simbolizava a Nintendo: uma mistura de ordem, seriedade e limpeza de um negócio de mais de cem anos com o espírito livre da infância, repleto de brincadeiras e situações divertidas. Suas contribuições para os videogames, porém, já fazem parte da história de uma indústria.