Por que realizar uma campanha publicitária sexista em pleno 2015 é uma grande estupidez
Eu não tenho nada contra a erotização masculina ou feminina dentro de certos contextos. A publicidade definitivamente não é um deles: ao objetificar um ser humano, principalmente mulheres, ela endossa estereótipos prejudiciais cujos efeitos reforçam as desigualdades sociais que ainda perduram na sociedade.
Publicidade é mensagem e quando essa mensagem é transmitida em detrimento a um gênero (ou seja, metade da população), não há como discordar de que se trata de uma prática antiética e abusiva. Em um meio composto predominantemente por homens jovens, em processo de formação de caráter, no qual mulheres são uma minoria, como o da comunidade em torno do jogo de tiro Combat Arms, essa prática é ainda mais repulsiva e irresponsável.
No começo desta semana, a Level Up! Games divulgou uma campanha publicitária para o título, divulgada em redes sociais e em sua página no Facebook, acompanhada por quase 200 mil pessoas. A peça parece ter como objetivo promover as duas personagens jogáveis novas, Ellie e Ophelia, e eventos in-game relacionados a elas. Ambas vestem apenas trajes de banho, deixando seus corpos quase que totalmente à mostra, o que certamente não parece ser uma boa ideia quando todos os outros combatentes atiram uns nos outros usando armas de fogo, equipados com capacetes, coletes à prova de balas e roupas camufladas especiais. Estamos falando de um jogo de tiro militar aos moldes de Counter Strike, caso não tenha ficado claro.
Como se isso não já não parecesse uma forma desesperada de supostamente atrair a atenção do público masculino, a Level Up! resolveu fazer vídeos com duas modelos reais trajando biquínis. Enquanto simulam uma disputa com travesseiros e Nerf Guns (o brinquedo, vale dizer, ganha mais destaque do que o próprio jogo) e realizam poses sensuais, câmeras dão closes gratuitos em seus peitos e traseiros. Parecendo-se mais com um trailer de soft porn ruim, o vídeo sequer é capaz de comunicar algo: não faz menção às personagens dentro do jogo e não mostra absolutamente nada sobre Combat Arms. Ironicamente, o link para o hotsite do conteúdo com as personagens, disponível na descrição, estava incorreto até o final da tarde desta quarta-feira (22), e levava o usuário para uma página de erro. É apenas um vídeo apelativo e sexista, e um desfavor ao meio de videogames, que cada vez mais abraça o tratamento igualitário às diferentes identidades de gênero e sexualidade.
**o vídeo da campanha foi removido após as reclamações recebidas**
Os responsáveis pela campanha (e pelo conteúdo adicional ao jogo) seguiram a velha e ultrapassada presunção de que mulheres seminuas são suficientes para atrair a atenção de um determinado público. O que eles provavelmente não percebem é que, cada vez mais, o sexismo evidente e descarado é notado e repudiado até por aqueles que supostamente seriam atraídos por ele.
Uma pesquisa recente, realizada pela pesquisadora e educadora Rosalind Wiseman, em parceria com o especialista em comunicação Charlie Kuhn e a atriz e dubladora de videogames Ashly Burch, entrevistou 1.400 estudantes do ensino fundamental e médio dos EUA sobre a representação de gênero nos videogames. O resultado, divulgado durante a GDC 2015 e destacado pela Time no começo de julho, aponta três coisas importantes:
1. Garotos acreditam que personagens femininas são tratadas com frequência como objetos sexuais.
47% dos garotos do ensino fundamental e 61% dos garotos do ensino médio concordam ou concordam plenamente com tal afirmação. “Se mulheres são objetificadas desta forma, isso anula todo o propósito da luta”, disse Theo, um garoto da oitava série do ensino fundamental norte-americano, que adora Mortal Kombat. “Eu respeitaria mais a personagem [feminina] por ter mais dignidade.”
2. O gênero do protagonista não determina se o jogo será mais jogado por garotas ou garotos
70% das garotas e 78% dos garotos dizem não se importar com o gênero do protagonista. Contudo, conforme crescem, garotos dizem se importar menos em jogar com personagens masculinos, enquanto que garotas dizem se importar mais em jogar com personagens femininos.
3. Garotas jogam uma variedade de gêneros
26% jogam jogos de tiro como Call of Duty e Halo
36% jogam RPGs e jogos de mundo aberto como Skyrim e Grand Theft Auto
Além disso, 55% dos garotos que se identificavam como “gamers” acreditam que deveria haver mais personagens femininas nos jogos, enquanto 57% acreditam que personagens femininas são tratadas como objetos sexuais com muita frequência.
Embora a pesquisa seja referente ao público jovem norte-americano, o Brasil passa pelas mesmas transformações sociais nas quais os EUA estão inseridos (e provavelmente todo o resto do mundo ocidental). Basta notar como a conquista do direito ao casamento civil por homossexuais em todos os EUA foi celebrado no Brasil, que o garante por lei desde 2013. Questionamos o sexismo no nosso dia-a-dia e buscamos a igualdade nas mesmas proporções. Essa é uma forte característica das gerações Y e Z, impulsionada pela liberdade democrática da internet e capacidade de coletivamente contestar o que é imposto pela mídia e publicidade. E isso fica evidente com a recepção do público à campanha da Level Up!.
Com aproximadamente 60% de votos negativos (o teaser, ainda mais explícito, tem uma média de 80% de desaprovação), quase todos os comentários são referentes à campanha em si, e não ao produto que, teoricamente, ela deveria promover (novamente, ele sequer é identificável). Em meio a alguns comentários machistas previsíveis, é notável a quantidade de pessoas (homens, em sua maioria) criticando a postura da Level Up!. Outros sugerem que façam também uma versão masculina da propaganda, direcionada às mulheres e homens gays que jogam Combat Arms.
A verdade é que sexismo não é mais apenas notado apenas por quem é vítima dele. A última E3 provou que a existência de uma indústria de games mais igualitária, com o mesmo tratamento a homens e mulheres, com uma maior participação feminina no desenvolvimento de jogos e com personagens femininas mais frequentes e não-objetificadas não é somente uma realidade possível: já está acontecendo. E apostar na forma ultrapassada de promover videogames associando-os gratuitamente à mulheres seminuas não é mais apenas antiético. É burrice e um evidente sinal de estagnação.