Esta brilhante animação fez em 1982 o que jogos em primeira pessoa estão fazendo hoje

Levou anos até que os jogos em primeira pessoa conseguissem se desvencilhar das armas e mecânicas de tiro que serviram de alicerce para o gênero. Despido de ação e explosões, estes jogos começaram a experimentar as possibilidades perceptivas, narrativas e espaciais da perspectiva em primeira pessoa. Ao assumirmos o ponto de vista do observador dentro de um ambiente virtual, nossa projeção e senso de existência naquele mundo são acentuados, tal qual a sensação de perigo, inquietude e urgência que ele pode nos transmitir.

Uma animação experimental me chamou a atenção justamente por explorar essas ideias muito antes que alguém pudesse fazê-lo nos videogames. De 1982, Le Ravissement de Frank N. Stein (“O Arrebatamento de Frank N. Stein”, em português) é um impressionante curta de nove minutos do sueco Georges Schwizgebel, que faz uma reinterpretação do clássico A Noiva de Frankenstein, de 1935, nos colocando inadvertidamente na perspectiva da criatura cuja vida é criada artificialmente. Inclusive, uma das cenas da animação acabou se tornando a capa do excelente álbum R Plus Seven, do Oneohtrix Point Never, através do qual conheci o trabalho de Schwizgebel.

Após situar o observador no laboratório do Dr. Frankenstein, passamos a acompanhar um caminhar, em primeira pessoa, por uma sequência infindável de salas inicialmente vazias, ao som de uma trilha sonora eletroacústica inquietante. Conforme avançamos, os ambientes começam a ganhar novos elementos geométricos, brincando com padrões de repetição e nossas expectativas a partir daquela perspectiva e seu movimento contínuo. É algo que jogos em primeira pessoa começaram a experimentar apenas recentemente, como nos excelentes Antichamber e The Magic Circle.

As salas passam, aos poucos, a ganhar formas mais orgânicas e humanas, que contrastam com os sólidos geométricos de anteriormente. Ao mesmo tempo, esses objetos passam a emitir sons, que aumentam conforme a câmera se aproxima e diminuem com seu afastamento – tudo isso em uma época cujo conceito de exploração de ambientes virtuais em primeira pessoa ainda sequer era muito difundido ou compreendido, vale dizer.

Em certo ponto, a animação passa a fazer exatamente aquilo que alguns jogos de terror em primeira pessoa fazem com tanta maestria atualmente: brincar com a expectativa do jogador – ou do observador, neste caso. À medida que figuras humanas inertes e sinistras passam a ocupar as salas, é impossível não ficar apreensivo conforme a câmera, sempre seguindo em frente, se aproxima delas. Inicialmente estáticas, elas passam a se mover, causando um extremo desconforto ao espectador, a essa altura já bastante aflito. A nós que estamos acostumados com o senso de controle em jogos em primeira pessoa, a sensação de impotência e desejo de mover o olhar e o caminhar é latente.

Os elementos geométricos dão lugar a ambientes mais realistas e figuras humanas – todas de Frankenstein, o monstro, e a noiva criada para ele. E nos corredores escuros e infinitos, todos observam o observador (nós), em uma sequência extremamente incômoda. Ao final, conforme a câmera desce mais um lance de escadas, o cenário em si, composto por duas portas, se distorce, transformando-se no rosto do monstro. Subitamente passamos a enxergar a cena em terceira-pessoa.

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A mudança de plano sugere que tudo o que havia sido visto antes, em primeira pessoa, representava uma abstração da perspectiva do monstro e uma reflexão sobre sua própria existência. Como se o monstro passasse, a partir da observação e contato com o mundo, a compreender as coisas que o rodeavam e a si próprio. Neste processo doloroso, confuso e, a priori, infindável, a busca por si próprio culmina no encontro de um semelhante – sua esposa.

É exatamente neste momento em que somos removidos da perspectiva do monstro para que possamos notar, em suas expressões faciais, a dor de sua rejeição. E assim que o filme estilhaça justamente aquilo que ele buscava, a câmera continua se afastando, revelando uma plateia de cinema e nos inserindo no papel de um mero espectador de uma ficção. Mas enquanto ele parece rasgar o contrato que havíamos acordado anteriormente, ao assumirmos a perspectiva do monstro minutos antes e projetarmo-nos para dentro da obra, ele novamente nos insere dentro dela, mostrando que a plateia também fazia parte da obra, literalmente mostrando-a dentro da película de filme.

Embora a inusitada exploração da perspectiva em primeira pessoa de Schwizgebel em Le Ravissement de Frank N. Stein seja o elemento mais correlacionável com os videogames, a quebra da quarta parede e os questionamentos subversivos sobre gênero e linguagem também podem ser encontrados nestes mesmos títulos, como no próprio The Magic Circle e The Stanley Parable. Há também em Le Ravissement de Frank N. Stein muito do que os jogos independentes estão atualmente se propondo a fazer: experimentar a ponto de tornar a classificação em gêneros existentes algo impraticável e inútil.

A animação em si é certamente brilhante, mas para apreciá-la melhor, é importante assistir a dois trechos emblemáticos de A Noiva de Frankenstein: um no qual no qual os cientistas acordam a criatura feminina criada artificialmente e outra na qual o monstro é rejeitado pela mesma.