Livro aberto: os processos criativos de Rodrigo Zangelmi, Lucas Molina e Marcos Venturelli

Quando a criatividade é a base para o exercício de uma profissão, é preciso encontrar maneiras de canalizá-la. Cadernos de rabiscos e anotações geralmente são grandes companheiros de designers e artistas de jogos, que lidam diretamente com a criatividade na elaboração de sistemas, histórias, universos e personagens. São eles que carregam os primeiros esboços do que eventualmente pode se tornar um grande jogo. Mas o que essas pessoas talentosas costumam registrar nesses pequenos diários? Como eles lidam com a criatividade? É isso que pretendo explorar nessa série.

A cada coluna, três designers e artistas abrem seus sketchbooks e revelam rabiscos, desenhos e anotações que podem ou não já ter virado algum jogo concreto, permitindo-nos acessar um pouco seus processos criativos. Além disso, todos respondem às mesmas três perguntas sobre criatividade e sua relação com seus cadernos.

A coluna estreia com a participação de Rodrigo ZangelmiLucas Molina e Marcos Venturelli.

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Zangelmi é o artista por trás dos jogos do estúdio paulistano Pocket Trap, que vem se destacando em editais e concursos desde o lançamento de Ninjin, em 2013. Atualmente o estúdio trabalha em Ninjin: Clash of CarrotsDodgeball Academia e um título mobile baseado na série de animação Historietas Mal Assombradas Para Crianças Mal Criadas.

Caderno de Zangelmi:

Molina é o desenvolvedor independente responsável pelo simpático Painters Guild. Recentemente ele anunciou seu afastamento das escolas onde ele lecionava aulas de História para se dedicar integralmente à criação de jogos. No momento, ele desenvolve Roguemance.

Caderno de Molina:

Já Venturelli passou por vários estúdios, trabalhando em títulos como Dungeonland e Chroma Squad. Atualmente, além de trabalhar na Behold Studio, ele tem sua própria empresa, a Rogue Snail, e lançou recentemente o delicioso puzzle Star Vikings. Em sua busca por anotações antigas, Venturelli encontrou páginas relacionadas a um projeto cancelado chamado Bruma, escondidas em cadernos antigos, que despertaram memórias de um momento difícil para o designer.

“Bruma (ou ‘Jogo 3’) foi o projeto que a Critical estava trabalhando antes de fechar. Era o oposto do Dungeonland em quase tudo: um jogo escuro, pesado, triste, lento e estratégico. A ideia era ‘XCOM Medieval’ com uma pegada bem ‘Darkest Dungeon’ (isso antes de XCOM voltar à moda e da existência de Darkest Dungeon).

O que eu achei mais interessante olhando as minhas anotações do Bruma (além de serem um triste registro de um jogo que nunca existiu) é que são uma representação física do meu estado psicológico naquela época. Eu estava completamente esgotado e obcecado — não tinha mais energia pra trabalhar, e ainda assim precisava de alguma forma fazer o melhor design da minha carreira, um jogo tão bom que fosse capaz de tirar a Critical da situação ruim em que a gente estava e ao mesmo tempo ‘provar’ para o mundo e pra mim mesmo que eu não era um fracasso.

Normalmente as minhas anotações são muito bagunçadas, cheias de rasuras e com garranchos. Eu me divirto quando estou trabalhando no caderno, normalmente. As anotações do Bruma têm uma precisão meio bizarra, eu não riscava quase nada, a letra era mais fina e bem desenhada, parecia realmente outra pessoa. E a quantidade… eu tenho umas 50 páginas de design nos cadernos do Bruma, e eu jogava fora tudo e começava de novo. Fiz isso umas 3 vezes, com sistemas extremamente complexos, que não só estavam pensados mas também provados em protótipo jogável. Naquela época eu trabalhava umas 14 horas por dia, era assustador. De tudo aquilo ficaram apenas as lembranças e essas páginas de caderno.”

Caderno do Venturelli:

 

Abaixo, você lê as respostas dos desenvolvedores:

Por que seu sketchbook é importante para você?

Zangelmi: Eu sou um cara esquecido. Antes de tudo, os cadernos servem para eu não perder coisas. Eu costumo ter muitas ideias (não necessariamente boas, diga-se de passagem) e sem um caderno para despejar tudo isso, eu provavelmente perderia muito. A desculpa que muitos jogos usam de “escrever no diário pra salvar”, eu aceito numa boa, só que na versão rabiscos.

Além da praticidade, acho muito legal poder chegar no final de um caderno e rever procurando evoluções e involuções, puro controle mesmo. Acho que é muito bom você ter vergonha de cadernos anteriores ao atual, né? Alguns cadernos são como as fotos de adolescente awkward do colégio, você sabe que precisava daquilo para evoluir, mas fica feliz que já passou.

Ilustrações de Rodrigo Zangelmi para Ninjin: Clash of Carrots

Ilustrações de Rodrigo Zangelmi para Ninjin: Clash of Carrots

Molina: O caderno é uma extensão dos meus pensamentos. É onde eu coloco ideias pra fora, organizo e vejo elas claramente. Aí posso explorar elas, ir construindo algo com os tijolinhos de ideias. O caderno é a superfície para essa parede, sem ele fica tudo perdido no ar.

Venturelli: Eu simplesmente não funciono sem o meu caderno!

Acredito que design é complexo demais pra existir e funcionar totalmente dentro da cabeça (pelo menos pra mim). Acho que as ideias começam a tomar corpo e os problemas mais óbvios começam a aparecer quando você tenta escrevê-las — elas perdem um nível de abstração, por assim dizer. Muitas vezes uma ideia que parece “pronta” e genial se mostra extremamente tola e cheia de buracos quando você tenta estruturá-la.

Eu costumo pensar muito visualmente. Design pra mim é praticamente impossível de descrever linearmente — são muitas relação entre diversas coisas, tudo se conectando, não existe necessariamente um começo-meio-e-fim em um design de sistema, saca? Daí eu tendo a ter mais desenvoltura, principalmente nas etapas iniciais, usando um caderno ou um tablet pra desenhar, fazer círculos, setas, rascunhar visualmente algumas coisas, etc.

E por fim e não menos importante, o caderno é uma forma de se “desconectar” e trabalhar 100% focado. Por enquanto ainda não inventaram caderno com wi-fi e notificações, então pra mim ainda é a melhor ferramenta de trabalho pra manter o meu foco!

 

O que você costuma registrar em seu caderno?

Zangelmi: Apesar de por enquanto a Pocket Trap focar em jogos, nós temos muita vontade de um dia sermos “criadores de conteúdo”, independente da mídia. Então desde já, eu tento desenvolver o hábito de ter uma ideia, deixar ela se soltar e ser feliz para daí ir checar onde ela se dá bem. Por isso meus cadernos tem ideias aleatórias de “qualquer coisa”, por exemplo, eu provavelmente nunca vou criar uma proposta de filme, mas se eu tiver uma ideia, eu vou anotar. Em último caso, foi exercício criativo e pode ser útil pra outro projeto/mídia.

Meus cadernos são uma mistura de testes de desenho com anotações que não fazem sentido, as vezes nem para mim. Por exemplo, não sei o porquê tem escrito “poop fairy” em uma das páginas. Agora eu tento legendar algumas coisas, porque antes era normal eu registrar algum detalhe de algo e depois olhar o desenho e pensar “que que é isso?”.

Deles, eu acabo passando tudo para o meio digital por organização/backup, para saber onde buscar cada coisa e mostrar fácil para os outros. Então eu realmente considero os cadernos como lugar para testes, qualquer coisa tá valendo. Inclusive, se faço algum desenho em papel avulso e acabo gostando, colo ele no caderno para manter a timeline (e porque recortar e colar é divertido).

Molina: Registro qualquer ideia interessante. Normalmente é game design, problemas e soluções. Tipo: como eu posso expressar tal coisa através de uma mecânica? Ah, uma possibilidade seria tal e tal. Às vezes faço um rascunho; espaço é um elemento básico de game design e desenhar ajuda a expressar essas ideias.

Anotações de Lucas Molina para Roguemance

Anotações de Lucas Molina para Roguemance

Venturelli: Absolutamente tudo! De mecânicas a design de fases, to-do lists, produção, rascunho de trailers, campanhas de marketing etc. Mas o que você mais vai encontrar no meu caderno são mecânicas, mesmo. Eu só consigo pensar sistemas com papel e caneta. Se um dia eu precisar fazer um design complicado sem ter com o que escrever, não vai dar nada certo.

Onde e quando você costuma ter suas melhores ideias?

Zangelmi: Mesmo tendo sempre dois cadernos (um médio e um pequeno, que posso levar no bolso), acho que as melhores ideias vem nos momentos mais inconvenientes possíveis, como deitado pra dormir, no carro, tomando banho etc. Mas acho que é justamente nesses momentos em que você está com a guarda baixa e a cabeça vazia que a inspiração vem com tudo. Talvez o piloto automático das coisas do dia-a-dia deixem espaço para a mente viajar por conta.

Tem momentos que eu posso passar o dia todo forçando e não consigo criar um personagem que goste mas às vezes sem querer, em uns minutos, sai algo que se torna o começo de uma nova IP (obrigado Inktober!). Eu não moro mais em São Paulo e por isso sinto falta do metrô (não em horários de pico, por favor) porque era muito fácil ficar sentado, ouvindo música e “recebendo” ideias. Mas aposto que levando a inconveniência em questão, o fator “horário de pico” deve dar pontos extras de inspiração.

Molina: No chuveiro. Daí saio correndo pra anotar no sketchbook. Ou de noite, tentando dormir. Daí tenho que desistir de dormir e anotar as ideias. São as piores horas, mas deve ser quando a mente está relaxada ou algo assim.

Venturelli: Eu gosto de pegar o caderno e sair da mesa de trabalho. Eu viajo muito, então varia, mas quando estou em casa honro as minhas raízes nordestinas deitando com o caderno na rede (risos)! Em geral tento sair do meu ambiente normal. Levo muito o caderno para cafeterias, também.

Mas se eu tivesse que escolher uma única situação seria em viagens. Acho que mais da metade do design do Chroma Squad e do Relic Hunters foram feitos em aeroporto, rodoviária ou no meio de um vôo. Dentro de ônibus é complicado porque balança muito, mas avião é um lugar excelente pra puxar o caderno e me perder nas minhas idéias. Passa mais rápido, também!

Esboços de Bruma, projeto cancelado da extinta Critical Studio, feitos por Marcos Venturelli

Esboços de Bruma, projeto cancelado da extinta Critical Studio, feitos por Marcos Venturelli