Livro aberto: os processos criativos de Karen "bitmOO", Frederico Machuca e Wagner Monticelli
Quando a criatividade é a base para o exercício de uma profissão, é preciso encontrar maneiras de canalizá-la. Cadernos de rabiscos e anotações geralmente são grandes companheiros de designers e artistas de jogos, que lidam diretamente com a criatividade na elaboração de sistemas, histórias, universos e personagens. São eles que carregam os primeiros esboços do que eventualmente pode se tornar um grande jogo. Mas o que essas pessoas talentosas costumam registrar nesses pequenos diários? Como eles lidam com a criatividade? É isso que a série Livro Aberto explora.
Neste segundo post (veja o primeiro aqui), os artistas e game designers Karen “bitmOO” Teixeira, Frederico Machuca e Wagner Monticelli mostram o que guardam dentro de seus cadernos de desenho.
Após sua passagem pela Bossa Studios, em Londres, a santista bitmOO passou a se dedicar à produção independente de jogos, em projetos como Oceanheart, Astromantica e The Wolf’s Bite. Dona de uma arte fofíssima, ela costuma se aventurar em uma grande variedade de projetos profissionais e pessoais e registrar tudo no processo. Ah, e ela já saiu na capa da revista Develop.
Veja o caderno da Karen:
Wagner Monticelli é ilustrador e trabalha na gaúcha Aquiris (de Horizon Chase) desde 2009. Durante seus quase oito anos no estúdio, ele já trabalhou em mais de 15 projetos, atuando como diretor de arte, artista conceitual e especialista em efeitos especiais.
Veja o caderno do Wagner:
Frederico Machuca é artista, animador e game designer. Em 2015 ele lançou o emblemático The Guilt and the Shadow, um platformer melancólico sobre depressão. Seu último projeto é Zone of Lacryma, que concorreu ao prêmio de melhor jogo brasileiro no BIG 2016.
Veja o caderno do Fred:
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1. Por que seu sketchbook é importante para você?
bitmOO: Meu sketchbook é meu lugar de amparo e contemplação e é com ele que eu organizo o caos na minha cabeça. É muito fácil pra mim perder o foco, esquecer coisas, e a ansiedade e o barulho do mundo dificultam demais a introspecção. Esse caderno que eu levo pra todo lado é o meu quartinho do silêncio portátil.
Eu mantenho outros cadernos simultaneamente apenas pra desenho e estudos, mas sempre tenho um principal, este que vai estar na minha mochila sempre e que serve pra tudo que eu preciso. Não é intencional, mas parece que com o tempo ele vira um diário disfarçado – consigo reconhecer nele momentos da minha vida, sentimentos, situações boas e ruins, projetos passados. Então pra mim ele tem um valor sentimental muito grande, e é um registro bem pessoal mesmo. É um híbrido, uma extensão de muito daquilo que eu crio, penso e sinto.
Wagner: Meu sketchbook é importante para mim porquê é onde eu posso entrar em uma espécie de transe enquanto desenho, em um lugar que é só meu e posso soltar minha imaginação, um lugar sem regras nem regras.
Fred: Eu sempre tive o costume de ficar rabiscando e escrevendo em qualquer coisa que estivesse na minha frente. Com o tempo esses rabiscos começaram a se transformar em ideias mais interessantes, e com isso, a vontade de arquivar esses rabiscos foi crescendo. Como eu ainda não tinha um lugar específico para isso, me encontrava direto arrancando folhas de apostilas e guardando elas em pastas junto com guardanapos e outras folhas soltas.
Meu primeiro “sketchbook” foi o trabalho final de um aluno do meu pai. Era uma das diversas “apostilas” de 50-100 páginas em A4 que ele tinha guardado pela casa, e que eventualmente iria acabar no lixo algum tempo depois. Eu comecei a fazer meus rabiscos e anotações nos versos das páginas e isso durou uns 2 anos pelo menos. (eu ainda tenho uma dessas apostilas até hoje) Em 2010-2012 eu comecei a viajar bastante e levar uma apostila gigante para todos os lados não era nem um pouco prático. Foi ai que em 2012 comprei meu primeiro sketch book em uma das minhas viagens. Um sketchbookzinho fuleiro de $1.50 em uma Dollar Store. Uma das melhores compras ever.
2. O que você costuma registrar em seu caderno?
bitmOO: Tem de tudo, tudo mesmo! Eu não faço nele uma distinção entre conteúdo de trabalho ou pessoal, então além de desenhos, ideias de jogo e processos meus cadernos você vai encontrar notas aleatórias, pensamentos soltos, listas de tarefas, páginas em que eu escrevo sobre meus objetivos pessoais e dificuldades, coisas que me inspiram.. tem até lista de despesa de imposto de renda (ainda estou criando coragem pra usar spreadsheets).
Às vezes quando estou passando por um momento delicado na minha vida ou preciso tomar alguma decisão faço listas de prós e contras, coloco tudo no papel, no caderno. E aí você vira a página e tem o rascunho da ideia de um joguinho com mockups rabiscados e desenhos de vacas. Se eu sinto a necessidade de escrever pra me ajudar a organizar os pensamentos ou pra registrar algo pra não esquecer, vai estar tudo lá. É uma mistureba sem fim.
Definitivamente não é um caderno que eu me sinta confortável mostrando inteiro pra outras pessoas, é algo mais privado (por isso também mantenho sempre um outro caderno que seja só de desenhos). Quando tenho alguma ideia nele que eu queira dividir ou explorar mais, tiro fotos e levo pro digital. Nessas ele acaba sendo mais um berço pra ideias e pensamentos.
Wagner: Em geral registro rascunhos, anotações de ideias, estudos de anatomia e rabiscos aleatórios abstratos.
Fred: Pra mim ele é um lugar que eu registro qualquer coisa. Um desenho, ideias de um jogo, planejamento de alguma viagem, números de telefone, anotações de alguma aula e até serve de papel para quando alguém quer me deixar um recado. Tento ter uma relação beeeem desapegada (talvez por isso nunca comprei um moleskine) para não entrar numa neura de achar que meu sketchbook é uma obra em si e apenas o melhor do melhor merece ser registrado nele. Assim, olhando para trás, tenho uma timeline de várias camadas diferentes da minha vida, e não só das melhores partes. Um lugar que eu consigo materializar todas as loucuras que passam pela minha cabeça.
3. Onde e quando você costuma ter suas melhores ideias?
bitmOO: Varia muito. Geralmente longe do computador e distrações, só eu e o meu caderno. Às vezes nem isso. Gosto de dar longas caminhadas pra pensar, de tirar tempo pra sentar em um canto confortável e ficar comigo mesma pensando, fazendo nada. Meditando. Ouvindo alguma música, deitada no sofá. No exercício do ócio. Não sei porque o ócio tem uma conotação negativa, o ócio é algo maravilhoso pra cabeça da gente processar os pensamentos e começar a cuspir ideia sem parar.
Muitas das ideias que eu tive também foram rabiscando no meu sketchbook tomando café em algum lugar, ou no transporte – trem, ônibus ou avião.
Wagner: Costumo ter minhas melhores ideias as 4 da manhã quando acordo com insônia e com o cérebro super ligado, tenho muitas ideias e insights, e volto a dormir.
Também quando leio livros, vejo filmes ou imagens que me inspiram.
Fred: Sei lá, na real. Pra mim, “melhor ideia” é um conjunto de várias ideias superficiais em harmonia. Por causa disso, todas as últimas “melhores ideias” que eu tive acontecerem em momentos que eu estava focado e iterando em cima de outras ideias superficiais. Foram o resultado de um processo e não de serendipity. Já as “ideias superficiais”, eu tenho em qualquer lugar como qualquer outra pessoa.