Perguntei a 16 desenvolvedores de jogos quais são seus livros favoritos
Aproveitando a informalidade e acessibilidade que o Twitter proporciona, no início de janeiro tomei alguns minutos para fazer uma simples pergunta a diversos desenvolvedores de jogos: “Qual é seu livro favorito?”.
De veteranos da indústria, como John Carmack (Doom), Tim Schafer (Grim Fandango) e Warren Spector (Deus Ex) a novos e proeminentes desenvolvedores independentes, como Lucas Pope (Papers, Please) e Anna Anthropy (Dis4ya), obtive resposta de 16 grandes personalidades dos games. Foram mais de 40 livros mencionados, visto que poucos conseguiram listar uma única obra literária predileta – alguns como Robin Hunicke (Journey) e Harvey Smith (Dishonored) parecem verdadeiros ratos de biblioteca.
Mas antes que você comece a inserir a miríade de livros a seguir em uma lista do que deve ler nos próximos meses (já fiz o mesmo), algumas curiosidades:
John Romero e Brenda Romero, casados desde 2012, compartilham do mesmo gosto pelo A Leste do Éden, citado por ambos como um de seus livros favoritos.
Ficção científica e horror são os gêneros literários mais consumidos entre os desenvolvedores, o que não parece ser coincidência, dado que estes também são alguns dos gêneros mais populares nos videogames.
A maior parte dos livros citados são clássicos da literatura norte-americana moderna
Os autores mais populares entre os desenvolvedores (baseado na quantidade de vezes que seus livros foram mencionados) são: Dan Simmons, Kurt Vonegut, Stephen King, John Steinbeck e Roger Zelazny.
Anna Anthropy
Um dos principais nomes quando o assunto é sexualidade e gênero nos videogames, a game designer de Dys4ia e autora de Rise of the Videogame Zinesters, livro sobre o uso da linguagem de videogame como forma de expressão de pessoas “comuns”, Anna Anthropy cita Memoirs of a Spacewoman, da escocesa Naomi Mitchison, como seu livro favorito.
Memoirs of a Spacewoman explora uma realidade na qual a humanidade se depara com novos desafios sociais em função dos avanços tecnológicos e contatos com espécies alienígenas. Com grande influência da onda feminista dos anos 60, o livro aborda a ficção científica a partir de temas como sexualidade feminina e maternidade, deixando de lado os grandes conflitos típicos das óperas especiais para dar atenção à questões éticas, biológicas e sexuais.
Brenda Romero
Conhecida pelo seu trabalho no estúdio Sir-Tech, onde trabalhou em séries famosas para PC nos anos 80 e 90 como Wizardry e Jagged Alliance, além de game designer, Brenda também é proeminente no diálogo sobre gênero e sexo nos videogames.
Curiosamente, A Leste do Éden, de John Steinbeck, citado por ela como seu livro favorito, também foi mencionado pelo seu marido, John Romero, como um de seus romances prediletos. Lançado em 1952, o clássico da literatura norte-americana conta a história de duas famílias entre o século XX e o fim da Primeira Guerra Mundial, remontando eventos da Guerra Civil Americana.
Brian Fargo
Fargo fundou a Interplay em 1983, com apenas 21 anos. Alternando sua atuação entre produtor, diretor, designer e escritor, Fargo trabalhou em dezenas de jogos, ficando conhecido pela sua atuação em RPGs pós-apocalípticos ambientados em território americano, como Wasteland e Fallout.
Não é de se surpreender, portanto, que um de seus livros favoritos seja Swan Song, do estadunidense Robert R. McCammon, que conta a história de sobreviventes nos EUA devastados pela então União Soviética. Outro romance citado como favorito é Carrion Confort, do também norte-americano Dan Simmons, sobre indivíduos capazes de manipular pessoas remotamente, influenciando no curso da história dos EUA.
Veja também:
– A jornada de Kellee Santiago na busca pela inspiração
– Reinventando espaços: a trajetória de Dylan Cuthbert, co-criador de Star Fox
– Prestigiada pela revista Develop, Karen “bitmOO” anuncia saída da Bossa e carreira indie
Chris Avellone
Com um currículo repleto de RPGs, já tendo trabalhado em jogos com narrativas massivas como Fallout 2, Planescape Torment, Icewind Dale, Star Wars: Knights of the Old Republic II e mais recentemente Fallout: New Vegas, não é de se estranhar que Avellone esteja consumindo tanta ficção quanto produzindo-a.
Dentre os livros citados como favoritos estão a primeira parte de Catch-22(Ardil 22, no Brasil), de Joseph Heller, uma sátira de guerra repleta de paradoxos e twists temporais; a sátira religiosa The Screwtape Letters(Cartas do Inferno), de C. S. Lewis; a ficção filosófica de estrada Zen and the Art of Motorcycle Maintenance: An Inquiry into Values (Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas), de Robert M. Pirsig; o romance pós-apocalíptico Galápagos, de Kurt Vonnegut; o clássico da ficção científica Duna, de Frank Herbert e a ficção ciberpunk Snow Crash (Nevasca, no Brasil), de Neal Stephenson.
David Perry
Depois de uma história cheia de altos e baixos na Shiny Entertainment, empresa que David Perry fundou em 1993, o desenvolvedor norte-irlandês se focou no desenvolvimento de uma nova tecnologia de transmissão de jogos via nuvem, fundando a Gaikai, que viria a ser comprada pela Sonyem 2012 por US$ 380 milhões.
Respondendo à minha pergunta sobre seu livro favorito, Perry disse que seu gosto está sempre mudando. “Atualmente estou lendo isso: Assembly Language for x86 Processors (7th Edition), por Kip R. Irvine.” Parece que não é um romance.
Harvey Smith
Antes de trabalhar como diretor criativo em Dishonored, Harvey Smith passou pela escola Warren Spector/Ken Levine/Doug Churchde híbridos de RPG e FPS, tendo trabalhado em System Shock e Deus Ex.
Smith foi um dos que não conseguiu citar um único livro favorito: “Eu amo clássicos americanos do século 20, graças a influência dos meus mentores”, provavelmente referindo-se à Spector, Levine e Church. “O romance mais recente que me devastou foi Winter’s Bone”, de Daniel Woodrell, que em 2010 ganhou uma excelente adaptação cinematográfica, conhecida no Brasil como Inverno da Alma. Outro livro favorito de Smith é The Sound and the Fury (O Som e a Fúria, no Brasil), de William Faulkner, que conta o declínio de uma família descendente de um herói da Guerra Civil Americana.
Smith também cita The Chronicles of Amber e Jack of Shadows, ambos de Roger Zelazny, como suas séries de fantasia favoritas. É o único dos devs que mencionou graphic novels, como o autobiográfico Fun Home, de Alison Bechdel, o melancólico Blankets (Retalhos, no Brasil), de Craig Thompson, Sandman, de Neil Gaiman e Watchmen, de Alan Moore.
O romance sobre preconceito racial A Cor Púrpura, de Alice Walker, o clássico ciberpunk Neuromancer, de William Gibson, o romance de tons eróticos Lolita, de Vladimir Nabokov, a sátira experimental House of Leaves, de Mark Z. Danielewski, e a ficção científica romântica The Time Traveller’s Wife (A Mulher do Viajante do Tempo, no Brasil), de Audrey Niffenegger, também são lembrados por Smith.
John Carmack
Uma das mentes mais brilhantes dos videogames, John Carmack é considerado um dos pioneiros dos jogos em 3D em primeira pessoa. Além de ter impulsionado a indústria dos videogames com as tecnologias que ajudaram a fazer de jogos como Wolfenstein 3D, Doom e Quake enormes sucessos, Carmack também é um entusiasta de engenharia espacial. Em 2000 fundou a Armadillo Aerospace, uma empresa privada que atua na construção de foguetes e veículos espaciais de baixo orçamento e grande eficiência.
Não é nenhuma coincidência que espaço também seja o tema principal de seu livro favorito, A Deepness in the Sky, de Vernor Vinge, ficção científica densa sobre dois grupos humanos em expedição a um planeta dormente, na tentativa de dar um salto tecnológico ao fazer contato com uma civilização de aracnídeos alienígenas.
John Romero
Trabalhando ao lado de Carmack na id Software, companhia que ambos ajudaram a fundar, juntamente com Tom Hall e Adrian Carmack, Romero foi uma das mentes criativas por traz de Wolfenstein 3D, Doom, Quake e tantos outros jogos. Após atritos com John Carmack, porém, deixou a companhia para fundar a Ion Storm, onde trabalhou no infame Daikatana, lançado em 2000 depois de inúmeros atrasos. Embora não tenha emplacado nenhum grande jogo desde então, Romero continua sendo uma das personalidades mais icônicas dos games. Talvez sejam seus longos cabelos.
Romero também me respondeu dizendo que apontar seus livros favoritos era uma “escolha difícil”, mas faz sua listagem, dividindo em gêneros: Summer of Night, de Dan Simmons, em terror, Illium e sua continuação Olympos, do mesmo autor, em ficção científica, A Leste de Éden, de John Steinbeck (também apontado por sua esposa, Brenda Romero) em literatura clássica norte-americana e Danse Macabre (Dança Macabra, no Brasil), de Stephen King, em não-ficção.
Kim Swift
A lead designer de Portal e Quantum Conundrum, que também contribuiu em outros jogos da Valve, como Left 4 Dead e os episódios de Half-Life 2, e atualmente desenvolve jogos para a Amazon escolheu a comédia de ficção científica Hitchhiker’s Guide to the Galaxy (Guia do Mochileiro das Galáxias, no Brasil), de Douglas Adams, como seu livro favorito – provavelmente referindo-se à “trilogia” completa, de cinco livros, publicados entre 1979 e 1992.
Curiosamente, tanto o Guia do Mochileiro das Galáxias quanto Portal se destacam pela combinação inteligente de humor, muitas vezes esquisito e nonsense, e ficção científica.
Lucas Pope
O designer do premiado Papers, Please, talvez na dificuldade de apontar livros favoritos específicos, optou pela resposta preguiçosa (como ele mesmo assumiu) e disse gostar de qualquer livro de David Macaulay ou Martin Gardner.
Eu não conhecia os autores, mas David Macaulay, por alguma razão, me soava familiar. Pesquisando por seu nome, descobri que ele era o escritor e ilustrador por trás de uma criativa enciclopédia interativa em CD-Rom que eu tinha quando era criança, estrelada por um mamute, chamada Como as Coisas Funcionam (The Way Things Work, no original), lançado em meados de 1996 pela Globo no Brasil. Sua bibliografia é repleta de livros fascinantes sobre design e arquitetura.
Se David Macaulay representa o lado criativo e artístico de Pope, Martin Gardner deve dizer algo sobre seu pensamento lógico. Autor durante duas décadas e meia de uma coluna sobre matemática recreacional e enigmas lógicos e geométricos na Scientific American, Gardner foi um dos grandes desmistificadores da pseudociência, ao lado de Carl Sagan, com seu livro Mitos e Falácias em Nome da Ciência (Fads and Fallacies in the Name of Science, em inglês).
Nathan Vella
O co-fundador, ex-diretor de arte e atualmente presidente da Capybara Games, um dos mais renomados estúdios independentes do Canadá, disse que o livro que permanece em sua mente é City of Glass, do escritor norte-americano Paul Auster.
Primeiro livro da Trilogia de Nova York, a ficção metalinguística conta a história de um escritor cuja identidade se confunde com a do detetive que protagoniza o romance de mistério no qual ele trabalha. A dissonância de realidade se intensifica quando um segundo detetive, supostamente o próprio autor de City of Glass, entra na história. Com humor, Paul Auster desconstrói as histórias de detetives com camadas de realidades que se sobrepõem, engajando o leitor em uma trama de metamistérios.
Robin Hunicke
Depois de deixar a Electronic Arts, onde foi lead designer do simpático Boom Blox, Hunicke passou pela thatgamecompany, onde trabalhou como produtora do belo Journey, e na Tiny Speck, no criativo (mas já finado) Glitch. Foi lá em que ela conheceu o designer de Katamari Damacy, com quem trabalha atualmente em Wattan, jogo em desenvolvimento em seu estúdio Funomena.
“Tantos livros fascinantes… não sei se tenho um único favorito”, me responde Hunicke. O Inconsolável (The Unconsoled, no original em inglês), do escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro, romance surreal sobre um pianista que parece afundar em suas próprias memórias e inconsciente, “está no topo da lista”.
Hunicke também cita The Universal Baseball Association, Inc., J. Henry Waugh, Prop., de Robert Coover, sobre um contador infeliz que escapa da rotina ao cair na fantasia de seu jogo de dados sobre baseball; Dahlgren, de Samuel R. Delany, uma ficção científica pós-apocalíptica repleta de eventos e situações inexplicáveis; Excession, Iain M. Banks, sci-fi focado em dilemas éticos e “a maior parte de Joan Didion e John McPhee”.
Sean Vanaman
O roteirista da primeira e aclamada temporada de The Walking Dead, da Telltale Games, e co-fundador do estúdio indie Campo Santo diz que sua lista de livros favoritos é grande, mas a resposta rotineira é To Kill a Mocking Bird (O sol é para todos, no Brasil), de Harper Lee.
Clássico da literatura norte-americana moderna, To Kill a Mocking Bird é um dos mais importantes livros sobre desigualdade racial do século XX. Sob a perspectiva de uma ingênua garotinha de seis anos, cujo pai advogado é escolhido para defender um homem negro acusado de ter estuprado uma jovem branca, o livro é repleto de questionamentos sobre convenções sociais e racismo, ainda que carregado de bom humor.
SWERY
Não parece ser coincidência que Hidetaka “SWERY” Suehiro, o criador do cult Deadly Premonition, tenha como livro favorito um romance estadunidense. O desenvolvedor de jogos peculiares costuma abordar o universo ocidental sob uma ótica oriental, dando vida a alguns dos cenários e personagens mais esquisitos da história moderna do videogame.
Sem delongas, SWERY me responde apenas “A Coisa, de Stephen King”. O romance de terror (It, no original em inglês) conta a história de um grupo de amigos que, durante a infância, é aterrorizado por uma entidade malígna. Anos depois, já adultos, os amigos precisam se reunir novamente para enfrentar a criatura, que assume a forma de um palhaço.
Tim Schafer
O humor está presente em praticamente toda obra do carismático Tim Schafer, cujo currículo traz alguns dos melhores adventures da história, como Full Throttle, Grim Fandango, The Secret of Monkey Island, Day of the Tentacle, dentre outros. Quando pergunto sobre seu livro favorito, ele diz que Breakfast of Champions (Café da Manhã dos Campeões, em português), de Kurt Vonnegut, “teve um grande impacto em mim”.
O humor irônico que acompanha o romance satírico, no entanto, não amortece o inevitável soco no estômago do leitor. Com comentários ácidos sobre guerra, sexo, sucesso, política, desigualdades sociais e outros problemas da sociedade contemporânea, Breakfast of Champions (que ganhou uma adaptação esquecível para os cinemas, chamada no Brasil de À Beira da Loucura) é uma sátira que, ao mesmo tempo que causa riso, choca e comove.
Schafer também lembra de The Phantom Tollbooth, de Norton Juster, seu livro favorito na infância. Considerado o Alice no País das Maravilhas norte-americano, o livro conta a história de um garoto entediado que, ao encontrar em seu quarto um pedágio e um mapa para “as Terras do Além”, entra em seu carro de brinquero e dá início a uma jornada. Uma alegoria sobre cidades, o livro é repleto de personagens malucos, joguinhos de palavras e lições morais.
Warren Spector
Dar ao jogador decisões e escolhas morais sempre foi a filosofia de Warren Spector, uma das mentes por trás dos aclamados System Shock e Deus Ex. Curiosamente, escolhas também são um dos temas centrais de seu livro favorito, Time and Again, de Jack Finney.
No romance, o publicitário nova-iorquino Si Morley é recrutado pelo governo para uma experiência de viagem no tempo, podendo solucionar um mistério envolvendo uma carta recebida por sua namorada, datada do século XIX. Ao voltar para a Nova York de 1882, Si não apenas redescobre sua cidade como se apaixona e se depara com a possibilidade de viver para sempre no passado.